VÍNCULO 1392 – Os dados de casos e mortes por Covid-19, as previsões sobre a economia brasileira e o comentário geral na imprensa nacional e internacional confirmam posições e julgamentos que fizemos no Editorial do VÍNCULO em 25 de abril passado, intitulado “Brasil: crise política, econômica e sanitária”.
Crise econômica
Para quem não gosta ou nega nossa insistência com a submissão da atual diretoria do Banco à Brasília – tema do nosso editorial anterior –, gostaríamos de ver o que tem a comentar sobre a frase do ministro Paulo Guedes: “A gente faz o que bem entender com a Caixa e com o BNDES”.
Avolumam-se as queixas de uma ação do BNDES marcada pelo funil dos bancos privados. As piores notícias quanto ao apoio via “sindicato dos bancos” também parecem se confirmar. A utilização específica que se faz do BNDES (inclusive e principalmente sua subutilização, por exemplo: o que está sendo feito com os recursos dos fundos não-reembolsáveis?) vai se tornando uma das evidências dos erros, argumentavelmente criminosos, da atual gestão econômica do país.
Crise sanitária
Quando o editorial foi publicado, o país registrava 4.057 mortes, hoje, 21 dias depois, alcançamos mais que o triplo do número de mortes – 15.633. Mais do que o triplo do México, segundo país da América Latina em mortes. Considerando a população total do país, são quase 70 mortes por milhão de habitantes. Nesse indicador, o Brasil é o terceiro pior em relação aos nove maiores países da América Latina (México, Colômbia, Argentina, Peru, Venezuela, Chile, Equador e Guatemala). Perde apenas para o Peru (73 mortes/m. hab) e para o conhecido desastre equatoriano, que gerou um cenário de pesadelo, com cadáveres sendo queimados na frente das casas etc. (147 mortes/m. hab). Confira aqui.
Não há indicação de que esse número no Brasil signifique que algum platô tenha sido alcançado. Com hospitais e UTIs lotados, estamos próximos, a nível nacional, ao que alguns estados estão experimentando – como o Amazonas, com seu sistema de saúde em colapso.
Se esse número de mortes pode ser considerado uma medida de resultado (output) do desempenho do Brasil em relação à crise sanitária, uma medida de esforço desse desempenho pode ser encontrada no número de testes que o país está fazendo para mapear a dimensão do problema do novo coronavírus entre nós. E nesse quesito de esforço o quadro também é sombrio. Entre os países citados acima, o Brasil é o quarto que faz menos testes: 3462 por milhão de pessoas – Guatemala (403 test/m.hab), México (1271 test/m.hab) e Argentina (2223 test/m. hab). Os dois países que estão à frente do Brasil por mortes por habitantes já fizeram muito mais testes: Peru (19.157 test/m. hab) e Equador (5.301 test/m. hab).
Esses números, se não demonstram, são compatíveis com a hipótese de que estamos fazendo muito pouco, comparativamente, para enfrentar a crise. É curioso que a comparação do Brasil com os países da América Latina tenha sido relativamente pouco explorada até aqui. Escutamos a todo o momento, na imprensa e nas mídias sociais, comparações com países europeus e, é claro, com os Estados Unidos. Talvez um sinal de que a desconsideração cultural do nosso casamento geográfico com a região não apresenta vieses: ignoramos nossos vizinhos na “alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza”. Os efeitos disso são significativos. Há os que chegam a considerar nosso enfrentamento da crise como resultado da situação de desenvolvimento brasileira (não somos a Espanha, a Itália, muito menos a Alemanha). É fundamental esclarecer que o nosso grau de desenvolvimento não é responsável pelas irresponsabilidades do nosso governo.
De toda maneira, a empáfia brasileira não tem razão de ser. Que o desgoverno Bolsonaro nos torne mais humildes e latino-americanos poderia ser um legado positivo do atual desastre. Não somos “melhores” que ninguém, nossa sociedade conheceu maior sucesso no processo de industrialização por boa parte do século XX, mas é marcada profundamente pelas cicatrizes da desigualdade e da dependência que caracterizam a América Latina. Só num cenário como esse é possível um governo como o de Bolsonaro. Em resumo, se o subdesenvolvimento não nos condena ao bolsonarismo, é impossível imaginá-lo fora dos parâmetros dados pelo subdesenvolvimento.
Crise política
Antecipávamos, no mesmo editorial, que a crise política decorrente das denúncias do ex-ministro e juiz Sergio Moro seriam devastadoras. Sem dúvida que aumentou a instabilidade institucional. As notícias aterrorizadoras sobre o conteúdo do vídeo da reunião ministerial – as loucuras proferidas pelos ministros –, a manifestação, em seguida, antidemocrática e ameaçadora do vice-presidente da República, e por aí vai… A situação piora e é imprevisível nessa frente também.
A queda da popularidade do governo surpreende menos do que a resistência de parte de sua base social. Assusta saber o quanto não temos anticorpos à ignorância mais profunda e o grau de fanatização das pessoas que seguem o presidente.
Note-se que o que está em questão não é apenas ou principalmente o resultado substantivo que o Brasil apresenta. É todo o procedimento que estamos testemunhando para tomar decisões diante da crise. Veja o caso da Suécia. A controversa decisão do país de não acompanhar o consenso médico mundial é comandada, mal ou bem, por seus técnicos. Trata-se do julgamento sobre premissas incertas, questionamento de estudos feitos por outros países. Revela também julgamento aplicado às condições específicas do país: habitações pouco populosas, grau de instrução da população etc. O sistema de saúde sueco, por exemplo, não está em colapso e há notícias de que a política atual será revertida caso o país se aproxime dessa situação.
No Brasil, em contraste, nossa condução é dada fundamentalmente por um homem insano que vive fora do país e é idolatrado pelo presidente e seus filhos. As instituições médicas são desrespeitadas, dois ministros da saúde, que eram simpáticos e aliados do presidente, são levados ao afastamento por não conseguirem ditar minimamente a política de combate ao novo coronavírus. Interesses privados empresariais se impõem sem nenhum disfarce e com total desconsideração à parcela mais pobre da população. Medidas econômicas de combate à crise são hesitantes e submetidas aos interesses dos bancos privados.
O caso brasileiro vai para o exame da história. Como conseguimos, por vias democráticas, alcançar um resultado que combina liberalismo à la Pinochet e grau de obscurantismo desconhecido no mundo moderno (a competição com os regimes fascistas italiano e alemão, nesse quesito, é totalmente apropriada)? As instituições políticas que foram construídas nos anos 80 e as instituições econômicas criadas na segunda metade do século XX resistem. Mas o fracasso econômico e social da Nova República é mais que evidente.
Que a saída dessa crise aconteça e tenhamos aprendido que ou mudamos radicalmente a direção do desenvolvimento econômico brasileiro ou estaremos ameaçados pelas criaturas desse Brasil autoritário, ignorante, submisso internacionalmente e desumano. Ou o Brasil aprende ou está ameaçado como Nação do desenvolvimento.