Uma semana após o Supremo Tribunal Federal (STF) ter derrubado, por maioria, a tese do marco temporal das terras indígenas, o plenário do Senado aprovou, na noite de quarta-feira (27), por 43 votos a 21, um projeto de lei que estabelece um marco temporal mais radicalizado.
O texto, que agora vai à análise do presidente da República, que pode vetá-lo, estabelece que só podem ser demarcadas terras indígenas que estavam ocupadas até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, além de prever outros pontos polêmicos, como a retomada de terras indígenas em caso de mudanças culturais destes povos e a plantação de transgênicos nas áreas demarcadas.
Em poucas horas, o projeto foi votado na Comissão de Constituição e Justiça, teve urgência pedida e foi ao plenário do Senado, onde passou sem dificuldades.
Uma eventual “derrubada” do projeto pelo STF só poderia ocorrer após ele ser aprovado e tornado lei. A interpretação é de que não cabe “controle antecipado” de constitucionalidade. Também seria necessário que algum partido acionasse o Supremo por meio de uma ação direta de inconstitucionalidade.
Com a aprovação do Congresso em uma direção e o entendimento do STF em outra, o professor titular da Faculdade de Direito da UERJ Gustavo Binenbojm afirmou, em entrevista ao O Globo, que uma ação direta de inconstitucionalidade será provavelmente ajuizada contra a nova lei. Também é provável que o STF entenda que ela é inconstitucional, segundo ele.
Em preparação a uma reação como essa, a bancada ruralista já se antecipou e tem coletado assinaturas para uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que tenta barrar ações do Supremo, no que considera “ativismo judicial”, e outra também sobre o marco temporal.
“Mas é possível que alguns ministros entendam que os direitos fundamentais dos povos indígenas constituem cláusulas pétreas implícitas, que decorrem do próprio sistema constitucional, e queiram derrubar a própria Emenda Constitucional”, ressalta Binenbojm.
Reações de membros do Observatório do Clima:
“O Senado quer perpetuar o genocídio indígena. Esse projeto de lei legaliza crimes que ameaçam as vidas indígenas e afetam a crise climática. O PL é inconstitucional e o Supremo já anulou o marco temporal, mas o projeto possui muitos outros retrocessos aos direitos indígenas para além do marco. Seguimos na luta e cobramos para que Lula vete esse projeto e concretize seu compromisso com os povos indígenas” – Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil).
“A decisão do Senado sobre o PL 2.903 vai muito além de uma briga de poder entre Congresso e STF. O texto consolida a tese absurda do marco temporal, mas, no estilo Cavalo de Troia, traz consigo a possibilidade de interferência em povos isolados para intermediar atividade estatal de utilidade pública – sem especificar o que diabos é isso –, permite de forma genérica a instalação de estradas em terras indígenas, admite a exploração de recursos ditos estratégicos sem consulta às comunidades. A lista de absurdos é grande. Assim como é vergonhoso ver nossos representantes aprovarem essa proposta, é muito triste constatar a dificuldade que o governo tem para barrar decisões que desmontam direitos fundamentais consolidados desde a democratização do país. Há processos em que qualquer tipo de negociação deveria ser afastada” – Suely Araújo, especialista-sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima.
“O Senado vai na contramão da Constituição ao legislar em favor de tese declarada inconstitucional pelo STF. Infelizmente, a bancada ruralista não se conforma com um dos principais papeis das Supremas Cortes nas democracias: a defesa dos direitos fundamentais das minorias. Por outro lado, infelizmente, o governo cede ministérios e dinheiro de emendas parlamentares, mas fica sem votos. Dessa forma, promessas fundamentais feitas pelo presidente Lula, como a continuidade das demarcações e a proteção aos direitos e das Terras Indígenas, são descumpridas” – Juliana de Paula Batista, advogada do ISA (Instituto Socioambiental).
“O Brasil não dá um minuto de paz aos povos indígenas. Ontem, foi o marco temporal, imposto pela bancada ruralista e sabiamente rejeitado pelo STF. Hoje, foi o PL 2.903/2022, aprovado no Senado. E assim, de batalha em batalha, os povos originários seguem pedindo respeito e proteção aos seus direitos fundamentais, bem como para as florestas que lhes servem de lar” – Danicley de Aguiar, coordenador da Frente de Povos Indígenas no Greenpeace Brasil.
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