Paulo Moreira Franco – Economista, aposentado do BNDES
Licht, mehr licht! (Goethe)
Vínculo 1516 – Eu estou saudando o motor de combustão interna. Acho uma das maiores conquistas do capitalismo. (…) Pra mim essa Love Parade é um símbolo de evolução. Quando nós criamos uma parada dessas, nós nos transformamos em Anjos sobre Berlim, ou mulheres da Suábia.
Eu saúdo o Mittelstand no momento de sua morte. Eu saúdo os Buddenbrook. Eu saúdo uma Alemanha que nos deu as Autobahn, os carros que como na canção do Roberto nelas trafegam a 200 quilômetros por hora, a música eletrônica que descreve esse movimento. Eu saúdo uma burguesia que continua burguesia, com suas dinastias familiares, até o momento final, onde ela restará uma mera persistência na nova formação econômico-social, a igualdade produzida pela redução ao subdesenvolvimento comum. Os homens fazem o grande reset, mas não o fazem segundo sua livre vontade.
Não deixemos que a abstração nos iluda sobre porque o carro corre na autobahn: força vezes movimento é trabalho. Energia é medida de trabalho, assim reza a física. O capitalismo tal como conhecemos se constrói com energia, e os termos de troca em que esta se relaciona com as outras mercadorias e com as pessoas a razão do sucesso ou do fracasso de um Estado.
Aquele que tem ouvidos, ouça: o desejo de quem explodiu o gasoduto, de quem forçou a guerra na Ucrânia, ao fim e ao cabo, é o fim da Alemanha. Era também o fim da Rússia, mas se alguém tem essa esperança no momento…
O problema do gás que não mais chegará não está no aquecimento das casas. O pouco que haverá poderá ser destinado a elas. Está nos produtos químicos que deixarão de ser feitos, nos metais que deixarão de ser trabalhados, nos pães que deixarão de ser assados. A posição de força do Mittelstand, que conseguia ser uma presença relevante no comércio internacional, finalmente pode ser contestada por plantas asiáticas, já que alguém terá que produzir, seja mais caro, seja em pior qualidade, seja sem tanta reputação, o que os alemães deixarão de fazer. China e Coreia do Sul, mais do que qualquer ilusão de reshoring americano, as grandes vencedoras nesse processo.
Se por algum milagre a situação se normalizar, as coisas não mais voltarão a ser como antes. Por quê? Porque até essa guerra começar os russos basicamente estavam condenados a vender seu gás aos europeus. Forçados a fazer o investimento de uma infraestrutura direcionada à Ásia, o gás se torna uma mercadoria cujo preço passa a ser alvo de um leilão – e não de uma negociação – e cujo teto é o caro gás liquefeito. Qual seja: o custo de energia das mercadorias alemãs (e europeias) está definitivamente submetido a um deslocamento. Não só a estagflação, mas os choques do petróleo de 73 e de 79 são lições históricas importantes dos setenta neste momento.
Só que nós não estamos nos setenta: vivemos num mundo com uma dependência de energia e de funcionamento regular de sistemas muito maior do que nos damos conta. O sistema de pagamentos hoje opera praticamente todo pela internet, bem como as comunicações, o lazer, as interações humanas. Como administrar a escolha trágica das partes suspensas desse conjunto de sistemas numa ordem neoliberal?
Acrescente o seguinte ponto: se nos setenta tínhamos um processo de criação de moeda que ainda tentava aderir ao fetiche metalista, com um sistema financeiro contido nos limites desse processo, o que fazer com a financeirização de hoje, onde praticamente qualquer coisa vira garantia creditícia? Como ficam as cadeias de derivativos e as estruturas legais que os fundam num momento em que os negócios começam a fechar? Somemos então, às crises dos setenta, crises como as que se viveu na primeira década deste século.
Que mais? Duas dinâmicas complicadas que irão trazer um sacolejo na dinâmica política da Alemanha (e da Europa em geral) no curto e médio prazo. A irrupção de uma economia de escassez, com possíveis racionamentos e seus mercados negros, fará com que as comunidades de imigrantes que já operam uma economia cinza possam se beneficiar enormemente dessa crise. Isso terá consequências criminais e políticas significativas. A segunda dinâmica será a recarbonificação. Retornando às agruras de um mundo pré-fordista, não se acredite que as pessoas na Europa estarão preocupadas, no curto-médio prazo, com a questão pós-industrial do aquecimento global.
E isso, se a guerra não se generalizar.
E, nesse caso, que Pedro, o Romano, ao menos tenha tempo de dar a unção dos enfermos aos patrícios de Bento e Gänswein.
Que em meio a esse tsunami tenhamos, novamente, no Brasil, só a marolinha.