Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES
Eu meço a vida nas coisas que eu faço
E nas coisas que eu sonho e não faço
Eu me desloco no tempo e no espaço
Passo a passo, faço mais um traço
Faço mais um passo, traço a traço”
(Marcos Valle/Paulo Sérgio Valle)
VÍNCULO 1560 – Se você, leitora ou leitor, for alguém sujeito a se deprimir com algo que venha a ler, cuidado com o texto adiante. Ele não é positivo, ele não aponta para coisas legais. E não, ele não trata de mudança climática.
Semana passada finalmente sentei para ler “End Times: Elites, Counter-Elites, and the Path of Political Disintegration”, do Peter Turchin. Turchin é o principal nome de algo chamado cliodinâmica, um entendimento de que a história é algo totally math. Conjure os espíritos de Políbio, Ibn Kaldum, a turma dos Annales, Kondratiev, Maquiavel, Marx, convoque-os a essa mesa branca para que eles falem através da língua dos números, através das matemáticas de complexidade. Submeta então big data e long dureé a traduzirem essas intuições, numa ameaça palpável à nossa ilusão de que sequer o que temos pela frente controlamos.
Tal como o mundo virtual no jogo de O Problema dos Três Corpos, onde eras estáveis são interrompidas por eras caóticas, a história apresenta alternâncias que por vezes são interpretadas como cíclicas, por vezes como aleatórias, pelas pessoas notáveis que a fizeram e a escreveram. Cliodinâmica busca identificar as “leis da física” dessa complexidade/caos.
Quais são esses ciclos? Na nomenclatura do Turchin, ciclos de integração e desintegração se alternam. Um ciclo de integração é uma família feliz, um país sob o Mandato dos Céus, um estado onde Dharma e a prosperidade se fazem presentes. Um estado sob o ciclo de desintegração, já isso é outra história. E é essa a parte da história que interessa, a parte da história em que ela não terminou numa eschaton hegeliana.
O sintoma central de que algo está errado e se entrou no caminho de uma fase desintegrativa é que se cria uma bomba (no sentido de bombeamento) de riqueza. Todo excedente que vai sendo produzido vai sendo apropriado pelas elites. A concentração de renda aumenta, eventualmente a população mais pobre começa a sofrer consequências malthusianas, como estagnação/redução de expectativa de vida ou diminuição de altura, consequências literalmente visíveis nas estatísticas. A renda mediana cai, muito embora isso não apareça para aqueles economistas que olham renda per capita.
Mas se isso é o que importa para as pessoas que se preocupam com o social – e talvez não haja melhor exemplo disso neste governo do que o muito bem escolhido Marcio Pochmann, o atual presidente do IBGE –, há um outro fator que é o que de fato causa as revoluções: a proliferação de elites. Num momento em que as elites são um bem-comportado e contido conjunto, a paz impera. No momento em que elas se tornam mais ricas, mais numerosas, mais diversas em suas origens e objetivos, a chance de mudança ou convulsão revolucionária acontece. Nesse momento, advogados como Lincoln e, em alguns casos, professores como Mao, irão conduzir um processo, seja literal ou figurativamente, de extermínio de elites até que elas tenham o tamanho devido para que uma nova ordem integrativa possa funcionar.
Mas por que falei do Pochmann? Porque recebi um post dele no twitter que notavelmente toca nisso tudo esta semana.
O número de ricos cresce num momento em que renda e riqueza dos mais pobres estão estagnadas, decadentes. Mas não é só disso que vive a expansão das elites. A expansão universitária, que por um lado qualificaria parte da população a atividades mais remuneradas, mais produtivas, tem a contramão de produzir mais aspirantes a posições de elite. A expansão universitária faz, contraintuitivamente, com que as formações/profissões universitárias se tornem, relativamente, mais banais e irrelevantes. Num certo sentido eu já tratei disso num artigo lá atrás, uma discussão do programa de governo de Bolsonaro e de sua ideologia, “Considere o Taxista”:
Num certo sentido, a ocupação dos DAS civis por militares, e o projeto de destruição do Estado durante o período Bolsonaro, visando que sobrasse um Estado muito mínimo onde só haveria forças de segurança e da lei, pode ser reinterpretado não como uma direita proto-Milei no poder, mas como os hoje essencialmente desnecessários militares brasileiros, numa tentativa de continuarem como parte da elite, capando nosso Estado administrativo. Por que os chamo “desnecessários”? Bem, toquei nisso meses atrás em “Aquisições”, o inchaço de nossas forças armadas. Mesmo nos EUA essa questão do excesso de posições de comando é percebida.
O problema dos que fazem faculdade na expectativa de que isso dará uma chance significativa de estar no 1%, e com certeza no 10%, expectativa que havia quatro décadas atrás, e que ainda está na cabeça de muita gente, esse não será resolvido tão cedo. O uso do salário-mínimo para reduzir desigualdade e atenuar o bombeamento de riqueza não resolve isso, nem uma taxação sobre esses cada vez mais e mais ricos que permita uma melhoria dos serviços públicos universais (que tornam nossa sociedade, sob certo prisma como o da saúde, menos desigual do que a americana). A quantidade de picanha no boi da hierarquia social, como em qualquer boi, é limitada. Mas alguém dirá: podemos empreender um boi-chester com mais picanha… não, não podemos. Existe uma solução chamada imperialismo em que você arruma um boi adicional, exporta parte de suas elites, e elas deixam de ser um problema interno, vide Reino Unido no século XIX. Mas a tecnologia não vai resolver isso, os milagres do neoliberalismo e da globalização não são solução.
Aliás, além de miséria e elites, há outros dois fatores de instabilidade: política fiscal e questões externas. Mas elas já estão muito presentes em nossa discussão política, e esse artigo ficaria muito longo se enveredasse por aí também. Considere, no entanto, que o desmonte do dólar (que é I Owe U do governo dos EUA) e a crise geopolítica que os EUA atravessam com o rearranjo eurasiano são dois fatores adicionais na dissolução da grande potência de nosso continente, e isso vai impactar aqui. Seja nos Cids e no Mito na Flórida, sejam nos que caem no mico de bidenomics, as dissonâncias cognitivas que serão vistas em parte de nossas elites intelectuais com a crise da plutocracia americana serão muito divertidas para os cínicos e os nacionalistas.
Para os quiserem ver um pouco mais do argumento do Turchin, esta entrevista na Salon está interessante. Um pouco mais longa, esta apresentação no youtube melhor ainda.