Paulo Moreira Franco – Economista do BNDES
Ass above, so bellow
(de The Hole Fought off De Carvalho’s Students.
Citado em Panelinha e Percussão – receitas de
protesto político pequeno-burguês)
Vínculo 1392 – “É como dizer que o lápis pulou dos dedos”. Assim reagiu minha filha quando defini o que era o argumento que tinha exposto: uma racionalização das ações de Bolsonaro ante à Covid-19. E é com este argumento que começo, paradoxal que possa parecer: há uma racionalidade no que o presidente propõe. Há uma ideologia, há uma sociologia, há um compromisso político com seus eleitores. Resolve? Bem, aí, caro colega, você está querendo a resposta certa sob seu olhar concursado de aluno da fila da frente. Racionalidade não é igual à correção, e por vezes somos forçados a atos estúpidos e equivocados em função do ponto de partida. O ponto é que não é por vilania (não que ela não exista, disso não se tenha a menor dúvida) que palavras, atos e omissões contra o isolamento social são cometidos pelo presidente. E não é pelo fato que vilania não necessariamente é o solitário guia que muitas mortes serão desnecessariamente antecipadas, para usar de um eufemismo.
Mark Blyth tem uma interessante comparação entre os EUA e a Europa: enquanto esta é um seguro (e tedioso) Volvo, os EUA são um envenenado Mustang das antigas: veloz, empolgante e sem airbags. O Brasil em que vivemos é uma kombi recauchutada, com pneus carecas e pastilhas de freio bastante gastas, descendo lotada a serra num dia de chuva e névoa. E o motorista bebeu, talquei? (nota do editor: Paulo, agora não é mais “talquei?”, é “e daí?”). O ponto do Blyth é que o aparato do welfare state europeu permite uma série de medidas em que o Estado provê enquanto as pessoas fazem seu isolamento. Por exemplo, o Estado pagar parte significativa do salário das pessoas enquanto estas estão em casa, de forma que as empresas nem demitam nem arquem com custos, coisa que países distintos com Áustria e Reino Unido fizeram.
Esse exemplo é impossível hoje no Brasil. A reforma trabalhista que começou ao final do governo Lula permitindo as MEIs, ampliada na destruição institucional do governo golpista – destruição que o atual governo pretende superar –, faz com que esse formato simples e prático de fazer chegar dinheiro às pessoas pela via do salário seja impossível, pois crescentemente as pessoas não têm salário. Reparem que, tirando os especialistas da área de saúde (que entendem do assunto, diga-se de passagem – e que na sua maioria estão no front dessa guerra), as pessoas que defendem publicamente a quarentena são em sua maioria pessoas com carteira assinada.
Se o canal salário não é viável para boa parte da população, renda básica universal poderia resolver esse problema, não? Não. O batalhador que vive de trampo nos grandes centros urbanos fatura mais que isso. Suas despesas vão além do salário mínimo, quanto mais dos 600. Lembro que o eleitorado de salário mínimo votou com o PT.
(aqui uma pequena ressalva: pessoalmente, sou entusiasta da renda mínima desde que li Capitalismo e Liberdade na primeira edição da série Economistas, meados dos 80. Não creio que Guedes tenha lido o mesmo livro que eu. Aliás, falando em Guedes, pequena digressão: reduzir as atividades presenciais da Fazenda para reduzir custos, bacana; reduzir para salvar vidas, inadmissível. Ao menos um segurança terceirizado morto atesta essa priorização).
Poderia então o governo pegar o faturamento desses empreendedores e… para! Só há registro daquilo que for necessário como comprovante fiscal de empresas maiores. Pense num táxi, por exemplo, o exemplo extremo. Sem falar que mesmo para o que está com contas em dia isso seria de dificílimo processamento.
E mesmo que o governo pudesse fazer isso, acho que há mais um ponto: se do ponto de vista individual mesmo o mais liberal dos batalhadores bolsonaristas achará válido receber um auxílio desse tipo, a ideia de que outras pessoas, que não ele, recebam do governo para não fazer nada – ou, pior, recebam ainda mais do que ele – é impensável. O tipo de ressentimento populista que animou essa base faz com que a solidariedade necessária a um programa desse tipo seja ideologicamente inviável.
Neste sentido, noutra live Blyth comenta que o sucesso da política de não quarentena da Suécia se deve ao fato de que lá as pessoas confiam no governo e seguem as recomendações dele – coisa que não ocorre nos EUA. Alexandre, como é a confiança aqui?
Portanto, sob o ponto de vista de Bolsonaro e de seu eleitorado, nada mais há a se fazer do que descer a serra confiando que a Kombi não vai acabar num barranco. Assim como o restante do perplexo mundo, o vírus ri de tamanhas inocência e ignorância.
(pessoalmente, creio que daqui a meia década ou menos alguém vai fazer uma correlação entre confiança/tamanho do governo vs mortes por covid por 100 mil habitantes – e descobrir uma linda relação inversa. Qual seja: pagaremos o preço da destruição do Estado perpetrada, com um leve arrefecimento de 13 anos, desde Collor).
Mas o esforço de racionalização não para só por aí. Há outro interessante lápis pulando: a presença constante da bandeira de Israel nas manifestações ‘antiquarentena’. Talvez as pessoas que carreguem essas bandeiras não tenham consciência do quanto ela representa um ideal para boa parte das lideranças que ladeiam o presidente hoje. Israel é um Estado cuja formação de governo depende continuamente de ceder à chantagem de grupos religiosos. Um Estado que concretamente está pouco se lixando para as pressões da ONU, para o que a opinião pública mundial acha a respeito de suas ações. Araújo não age assim?
O fato que pessoas são más não faz da maldade a causa de seus atos. Pessoas que praticam a estupidez porque assim é pedido pelo detentor do poder, essas sim. O respeito às normas, às ordens absurdas, às expectativas de seguir o que se espera, essas sim são as causas de um regime de iniquidade. Arendt. O que, por outro lado, não legitima a meu ver os atos de violência institucional que vêm sendo perpetrados contra este governo.
A medida monocrática do STF impedindo o presidente de nomear quem ele bem entendesse para a Polícia Federal, num ato de presciência criminal saído do script de Minority report, é bastante grave do ponto de vista institucional. Há separação entre poderes, há lei, e esta não pode ser o entendimento que for mais conveniente a cada momento ao Judiciário. Às pessoas preocupadas com um golpe militar, alerto: o Judiciário acha que o golpe que ele deu no governo do PT está consolidado. Engano: há um presidente capaz de agregar uma massa contra ele e sem escrúpulos de fazê-lo.
E aqui vai um ponto sobre o ataque ao Nakatomi Plaza… perdão, às “instituições democráticas”, que vem sendo perpetrado por Bolsonaro: Major Curió não é um torturador do Araguaia, um Ulstra da selva. Major Curió é o miliciano de Serra Pelada, o cara que foi posto pelo Exército a “ordenar” um processo de destruição humana e ambiental, de evasão de divisas e que mais crimes se possa pensar, que foi a mina. Virou deputado, prefeito, nome de município. Não deixem o torturador mascarar o miliciano: o primeiro é um abuso do Leviatã, o segundo a privatização deste. O objetivo de fato sempre é o segundo caso, que é onde se cai quando se arregaçam os escrúpulos. Serra Pelada em toda cadeia de ilegalidades e crimes perpetrados nela e em função dela certamente superou o Araguaia. Mas foi gente sem nome, fenômeno difuso, não contabilizado. Uma gripezinha…
No dia que antecedeu a noite em que revejo e finalizo este texto, a Paulista foi fechada por uma má infestação de caminhoneiros. Que Doria não tenha posto toda a violência policial de que dispõe contra essa afronta é um sintoma ou de covardia ou de impotência. O quanto a PM obedecerá a iniciativas mais sérias de lockdown, PMs, que como cidadãos, se alinham ao presidente? Vocês realmente acham que a Rosa de Tóquio de Carluxo acontece sem nenhum Balta enfiado lá dentro, seja como formulador, seja como olheiro? Quantas divisões tem Celso de Mello que pede que Heleno, Braga e Ramos (haja Eduardo!) deponham em Canossa?
Essa mobilização do presidente traz riscos além dos institucionais, riscos pessoais. Vizinho da barbearia onde corta o cabelo Roberto Jefferson, amigo de presidentes de jet ski, temo como notório comunolulopetista que sou ser alvejado num momento em que, de máscara, estiver atravessando a rua numa ida quinzenal ao supermercado.
Paulo Moreira Franco é um fiel funcionário concursado do Executivo, mas mais do que nunca torce pelo Botafogo.