“Lá um dia ele ruiu
Mas deixou uma lição
Que as pessoas tem seus preços
Tabelados por seus atos”.
(Paulo Soares Da Costa)
Vínculo 1584 – Numa das minhas incursões pelos tuiteiros de MAGAdônia esbarro num link para um argumento surreal: um swap ideológico entre Taylor Swift e Lana Del Rey. A primeira teria transitado de cantora de country para se tornar a possibilidade de se virar a eleição na Florida! Por Tutatis, há um verbete na Wikipedia sobre impacto político de Taylor Swift. Para quem acompanha NFL (como eu), impossível evitar o romance entre ela e Travis Kelce, a paranoia e as perspectivas que isso trouxe. E põe paranoia! Já Lana…
“Essa mulher cheirou pó vencido, de onde Lana é right coded?”, observou minha amiga A Artista. “Isso não faz o menor sentido”, me explicou minha filha, que até gosta delas, mas não faz parte do fã clube de nenhuma das duas. Mas, quando vou buscar as perspectivas americanas sobre Lana Del Rey, esbarro em alguns argumentos surpreendentes. Uma conservadora na linha do Christopher Lasch? (Lasch foi um intelectual conhecido por sua crítica ao narcisismo dos americanos e às elites que havia sobre eles) Outra, que mais me deixou perplexo, haveria em Lana um esoterismo a la Leo Strauss? (Leo Strauss, tido por pai do neoconservadorismo). E tudo isso reconhecendo o sabor a Pepsi-Cola.
A autora da análise, Katherine Boyle, é partner na a16z, a birosca de venture capital dos caras que fizeram a Netscape. Um longo post no X/Twitter, onde ela discute basicamente o pessoal de tecnologia da California para concluir ao final que:
All this is to say, the terms we’ve long used to describe political affiliation or ideology are pretty much meaningless now. And when language changes so swiftly, it means we’re living through a hard realignment. Don’t look to the recent past to bet on the future — it’s bound to look wildly different.
E isso uso de abertura para começar meu pitaco na discussão puxada pelo ilustre filósofo Vladimir Safatle, conversando com o pessoal da Ilustríssima (da Folha) sobre um livro que acaba de lançar. “A esquerda morreu e extrema direita é única força real no país”, assim é a chamada no título da matéria. Como o livro é um livro de crônicas, acredito que essa discussão seja a partir de uma crônica de fevereiro de 20, quando sequer havia Covid: “Como a esquerda brasileira morreu” (que foi seguido de outro duas semanas depois sobre o mesmo tema, que possivelmente é melhor que o primeiro).
Quatro anos depois, quão pertinentes são os argumentos ali postos? Amiga leitora, desculpe colocar um parágrafo inteiro:
“Nesse sentido, nossa história segue os passos da história argentina: outro campo de ensaio do populismo de esquerda. Mas há uma diferença substancial aqui. Depois da experiência ditatorial, a Argentina soube criar uma linha de contenção de impulsos golpistas. Hoje, quase mil pessoas ainda se encontram nas cadeias argentinas por crimes da ditadura. No Brasil, ninguém foi preso. A resposta argentina produziu uma linha de contenção, inexistente entre nós, que permitiu ao peronismo ter ressurreições periódicas. Dificilmente, essa será a história brasileira daqui para frente, pois o risco de deriva militar é real entre nós.”
Quatro anos depois temos o Governo Milei lá e o Lula de volta aqui. E eu poderia simplesmente cair na gargalhada e cessar essa discussão, perdoe o termo, escrotamente, aqui. Mas mais do que uma profecia ruim, outros são os problemas que vejo nessa análise do Safatle, que indiscutivelmente é um dos nossos mais sofisticados intelectuais. E por nossos, falo tanto do Brasil quanto do campo progressista.
O desdém da intelligentsia pelo populismo parece a raiva de Caliban à reprodução do imperfeito pelos abomináveis espelhos. Safatle, como alguém cevado no meio intelectual paulista, vê todos os males no populismo. A derrota de 32 certamente deixou um trauma. Mas elites não gostam de populismo. Sejam elites econômicas ou elites intelectuais, elas não gostam do populismo. O populismo é uma criatura da democracia, se sustenta em voto. O populismo desrespeita as hierarquias.
Uma interessante crítica aos argumentos do Safatle é este artigo do Theófilo Rodrigues. Entre outras coisas, ele destaca que existe uma outra versão de populismo, a de Mouffe e Laclau. Não que Safatle a desconheça. Mas essa concepção de populismo está por trás dos dois mais fulgurantes fracassos de esquerda da década passada: o Syriza na Grécia e o Podemos na Espanha. Não necessariamente fracassos por conta de suas falhas (colocadas pelo próprio Safatle no segundo artigo): eles antecipam em poucos anos o trumpismo global, uma revolta mais generalizada contra o neoliberalismo e suas instituições. O próprio Safatle tem uma discussão ambígua e sofisticada sobre um eco no Brasil desses movimentos, as manifestações de 2013.
Um outro problema é que em todos esses textos citados ele usa uma categoria de “extrema direita” que, concretamente, quer dizer apenas uma coisa: o conjunto de pessoas que se opõe à esquerda e ao centro. Embora eles possam aparecer frequentemente juntos, o nacionalismo MAGA de Steve Banon e Donald Trump é bastante distinto do entreguismo desenfreado do bolsonarismo, ou do anarcocapitalismo de Milei. Os posicionamentos quanto à globalização, papel de indústria nacional, moeda nacional – todos muito distintos.
A única coisa que de fato junta os fenômenos Trump e Bolsonaro é trauma. Ambos são o inesperado, o grotesco onde se esperaria um certo decoro. A desobediência popular que foi a eleição de ambos na década passada – lá por surpresa, aqui por falta de outra alternativa ao PT (pois a política brasileira de 94 para cá se define em quem é a alternativa ao PT, coisa que muita gente da esquerda não digere bem até hoje) – é algo que produziu esses loops temporais. Trauma: aquilo que é passado, mas processamos como se estivesse acontecendo agora. O Medo, como o próprio Safatle fala: um medo que permite passar toda uma boiada de interesses.
Mas tem também uma forma mais simplificada de ver o problema, e nem por isso errada, que é o que o Jones Manoel faz neste vídeo. E basicamente há uma crítica a um problema, que não é só brasileiro, o dos partidos de esquerda quando no governo traindo seus compromissos programáticos, em geral sob o pretexto da governabilidade ou de TINA (There Is No Alternative). Essa é uma crítica pertinente, mas que tem que ser sopesada para não virar a Bela Alma, aquela que é incapaz de agir no mundo para evitar a corrupção de sua pureza. Esse romantismo que a gente vê em candidatos que querem perder, que estão ali para exibir a pura beleza de suas ideias sem ter que encarar as escolhas trágicas de governar, não acrescenta.
Mas voltando ao começo, imerso nessa discussão traumatizada do bolsonarismo/extrema direita, Safatle não vê as demarcações do lado de lá, e as nuances dentro delas. E são os realinhamentos sob essas nuances que são realmente interessantes (tipo a reação ao projeto neoliberal vindo da direita). Assim como aqui a direita de elites tucano-pefelistas de fato morreu na primeira eleição de Dilma – mas só foi enterrada de vez por Tarcísio em 2022 – ainda é muito cedo para saber qual esquerda morreu, qual virá.
Ele também não declara na sua bagagem que essa crise da esquerda é sintoma de um realinhamento maior do mundo. Essa reviravolta nas esferas tanto econômica quanto geopolítica traz todo um pipocar de coisas enterradas, sejam fósseis, sejam brotos a crescerem e florescerem. Mas se você se resume ao político, tanto o passado reinterpretado, quanto os futuros possíveis, vão escapar. Do ponto de vista das questões brasileiras, se você toma qualquer oportunidade para enxergar o esgotamento da hegemonia petista e do populismo na esquerda, você não vai muito além de ser espelho do desespero de uma elite de centro-direita que não consegue fazer com que o Centrão pare de sair no Bloco do Lula.
Tenho uma hipótese ou outra sobre essas crises e realinhamentos, umas hipóteses realmente gauches, mas ficaria muito longo tomar esse caminho agora.
Até semana que vem, tragam seus tênis.
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