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“Fantasia para um futuro passado”, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

“E as coisas que eu sei que ele dirá, fará
Não sei dizer assim de um modo explícito”

(Caetano)

Véspera do Carnaval, faço um buquê de argumentos filosóficos vagabundos, e deles extraio uma fantasia de futuro. Não é ainda o fechamento da discussão de IA: há um texto indistinguível de magia a ser feito.

Meia década atrás eu conversava com uma amiga, uma brilhante artista três décadas mais jovem, na cozinha de meu apartamento. Lá pelas tantas, não me lembro exatamente os detalhes de como chegamos ao assunto, argumento que nem todas as relações podem ser definidas como relações de poder. E aqui vem a primeira percepção filosófica catada na Rua da Alfandega: nem todas as relações/percepções/conhecimentos são redes foucaultianas de poder. Existe poder, existe prestígio. Por meio de ambos pode-se chegar a um mesmo resultado, mas por vias (e intenções e consequências) diferentes.

Numa visão vinda da antropologia, a de Pierre Clastres, a diferença é bem simples. Mas ao invés de guerreiros indígenas, vou dar um exemplo que você, amiga leitora, já viu em algum filme ou romance. Artur, a partir do momento em que retira a espada da pedra, tem Poder. Ele é o rei, as pessoas devem obediência a ele. Ele é reconhecido como tal, mas, se precisar, aqueles cavaleiros não estão ali com espadas apenas como se essas fossem uma espécie de gravatas combinando com as armaduras. Lancelot, por sua vez, tem Prestígio. Lancelot fez grandes atos galantes, todo mundo reconhece Lancelot como “o cara”. Guinevere vai ter um rolo com os dois: num a relação juridicamente definida de casamento, rainha, um conjunto de obrigações e privilégios, de direitos e punições; com o outro, o prazer de estar com aquele guerreiro que todas desejam, uma espécie de graça divina.

O argumento da Sociedade Contra o Estado do Clastres, resumindo de forma apressada, é de que em nossas sociedades indígenas haveria um mecanismo explícito de não se produzir situações de poder, e que a forma de manejar o prestígio envolvia uma limitação coletiva ao poder do chefe (e a vida curta dos grandes guerreiros). O poder é da sociedade em si, não do Estado, não de quem ocupa uma posição no Estado.

Voltando à hipótese do Karatani, que interpretei como a Era de AQUARIUS, de que no “fim da história” ter-se-á o retorno à pré-história, a um mundo sem escassez e acumulações, onde tudo estará disponível: seja a informação, livre e instantânea, seja um mundo de impressão 3D e nanotecnologia como o de The Diamond Age (que incidentalmente andei citando para discutir hipocrisia). Será também um mundo eurasiano: as áreas dos trópicos estarão “desumanizadas” por conta da temperatura de bulbo úmido. Não se pode ter tudo querido Helinho…

Minha utopia envolvendo inteligência artificial, cento e sabe-se lá quantos anos à frente, é de que as hierarquias tão necessárias ao funcionamento de nossa complexa sociedade serão substituídas por máquinas da graça divina. Que mesmo o ato de descobrir ciência, desenvolver tecnologia e objetos, será feito por essas máquinas. Não é agora. Não é daqui a pouco. Nenhuma das pessoas que lê isto estará viva.

O que sobra de nós, humanos, se as questões de hierarquia, riqueza, humilhaçãopoder, em resumo – desaparecem? É uma questão de se olhar para trás, e se olhar este outro tipo de busca, o prestígio.

Um dos melhores argumentos para justificar desigualdades – o argumento Wilt Chamberlain do Nozick, usa, no fundo, de uma hierarquia que se funda em prestígio ao invés de poder. Para quem não conhece, Chamberlain foi um dos maiores jogadores de basquete da história, a ponto de mudarem as regras em função de seus feitos. Claro que ser esse Lancelot da bola laranja tinha impacto em outros lugares, e o disco muito gasto de Barry White era uma das consequências disso. Mas como coloca o Clastres, uma vez que o tempo consuma a experiência dos feitos, que se tornem mais memória do que “ontem!”, o prestígio desbota.

Continuando com referências obscuras (desculpe amiga, bem obscuras), tem um conto de Kafka que Zizek discutiu no Vivendo no fim dos tempos (e neste texto). Fazendo uma digressão bem mais banal da história, digamos que a ratinha não entende que no mundo em que ela vive, ao contrário do nosso (antigo) mundo do artista portador de autenticidade, seu prestígio não é monetizável.

O conto que provavelmente nunca escreverei sobre essa sociedade futura envolve como o prestígio será motivação. Como no caso de Bilbo Bolseiro em suas incursões pela Terra Média. Não acho que um fetichismo nietzschiano, o cosplay de chads da Ilíada que se tem hoje, seja o futuro. Não acho que a versão disso com o tédio, algo na linha de Zardoz, também venha a ser.

Haverá desejo? Havia antes da hierarquia.

Haverá carnaval? Provável.

Portanto, celebremos, na Cidade de São Sebastião que ainda há lá fora.

Washington, prometo que no próximo artigo volto com alguma coisa séria, tipo a entrevista de Putin com Tucker Carlson que sai nesta noite de quinta. Ou a reeleição em El Salvador. Ou o segundo ministério Lula, o de verdade, após o Carnaval. Ou… o mundo não para.

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