Paulo Moreira Franco – Economista do BNDES
Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
(A flor e a náusea – Drummond)
Vínculo 1324 – Domingo. Na minha inocência de ateu macumbeiro busco entender uma tal da Razão Prática – mas não a encontro em canto algum. Ao meu lado no 775 que atravessa uma engarrafada Presidente Costa e Silva, triunfo de engenharia quando do regime militar, uma moça de vermelho carrega um clássico de Drummond. Inspirado no título, peço a Santa Sophia Scholl um milagre. A outrem caberá prover a prova a ser analisada pelo Promotor Fidei.
Nas conversas que ouço, das pessoas que ali em pé esperam que algo aconteça, creio haver uns probleminhas de entendimento do que se passa, do que se passou, do que se passará. É nesses três tempos, sob a inspiração cabalística de pe, 17ª letra, que tento decifrar alguns desses sinais (faltam-me as maravilhas). Pois não creio que foram fake news que conduziram Bolsonaro à vitória, nem fascismo é um termo adequado para representar o que são suas atitudes e propostas.
F for Fake
Pequenas porções de ilusão
Mentiras sinceras me interessam
Muito se falou de fake news ao longo dessas eleições. Seja a preocupação do TSE, preocupação chupada de um carnaval que é moda na imprensa internacional desde o momento em que os fenômenos do global trumpism vem acontecendo à revelia do Quarto Poder, sejam os protestos (não endereçados a tempo pelo TSE) de quem foi vítima da campanha de (des)informação conduzida contra a candidatura derrotada. Há quem se sinta trapaceado pelo que rolou em redes de zap – onde parece que mais de um crime (caixa 2, calúnia e difamação, etc.) foi cometido. Mas não sei até que ponto possa me confortar com a doce ilusão de um VAR a reverter o resultado do jogo. Aliás, sinceramente, espero que esta não seja mais uma das gracinhas do Judiciário, tal como fizeram com a Dilma (até que se tornou desnecessário, já que o Golpe seguiu outros caminhos): o presidente Jair não me parece uma pessoa capaz de manter a tranquilidade sob a mira de uma pistola apontada permanentemente contra seu mandato.
Quem lê tanta notícia? Comecemos por uma fala de “a living humanitarian who’s done so much to promote human rights and understanding“:Remember that the media have two basic functions. One is to indoctrinate the elites, to make sure they have the right ideas and know how to serve power. In fact, typically the elites are the most indoctrinated segment of a society, because they are the ones who are exposed to the most propaganda and actually take part in the decisionmaking process. For them you have the New York Times, and the Washington Post, and the Wall Street Journal, and so on. But there’s also a mass media, whose main function is just to get rid of the rest of the population—to marginalize and eliminate them, so they don’t interfere with decision-making. And the press that’s designed for that purpose isn’t the New York Times and the Washington Post, it’s sitcoms on television, and the National Enquirer, and sex and violence, and babies with three heads, and football, all that kind of stuff.
Qual a mãe de todas as falsas notícias? Certamente as armas de destruição de massa iraquianas que justificaram a invasão em 2003. Mas isso não aconteceu na internet. Isso aconteceu na grande imprensa mundial. E ninguém ao que me consta perdeu sua posição por estar alardeando algo que era claramente absurdo. Como agora, quando se descobre que há um Hildebrando Paschoal por trás da fachada do Collor modernizador saudita, como se não houvesse centenas de milhares de iemenitas mortos a atestar isso. Como a palavra terrorismo, usada para deplorar aqueles que não são qualificados (por quem a usa) como legítimos portadores de um problema mental e/ou de alguma reinvindicação (estúpida ou não), fake news é algo que o establishment utiliza para desqualificar as peças de (des)informação produzidas por quem está fora da grande imprensa.
O fato é que a capacidade dos meios de comunicação do século XX para produzir seu papel (tal como descrito por Chomsky acima) foi perdida. As plataformas do século XXI permitiram que certas estruturas de comunicação (creio que a virada movida a sms na eleição espanhola de 2004 foi o primeiro caso) triunfassem sobre a (des)informação dos canais oficiais. Que mais fatores contribuíram? Talvez a destruição gradual da noção de realidade com coisas como reality shows. Talvez o descaramento com que a imprensa mente (ou apresenta a “dúvida”) em favor de justificar interesses de anunciantes, o tratamento da ciência sob a forma de polêmica quando a ciência não serve ao establishment (seja este político ou futebolístico, financeiro ou religioso).
A questão de quão problemáticos são os novos meios numa democracia não é assunto novo. Cass Sunstein (um relevante intelectual americano, professor de direito em Harvard, tipo de autor que o Excelentíssimo Senhor Luís Barroso Ministro do STF costumava citar no tempo em que ele era meramente um respeitado professor – e não o intelectual nos instruindo com Harari, coisas que saíram n’O Globo e, não tenham dúvida, haverá Peterson numa próxima visita), por exemplo, tem formulado umas interessantes preocupações sobre este assunto. Escreveu tem quase uma década um livrinho (que não li), A verdade sobre os boatos, que até foi publicado nestas terras. Fake news na época eram, por exemplo, que Obama era um muçulmano nascido em algum lugar que não os EUA. Trump enquanto liderança que incorpora elementos do tea party nasceu ali, com um apartamento no Guarujá em torno de uma mitológica certidão de nascimento do Hawai.
Nos dois parágrafos finais de um ensaio anterior ao livro, Sunstein visionariamente endereça a ineficácia da solução de checagem (cuja versão atual caminha para a censura) e as deficiências do mercado puro para se auto-corrigir:It is tempting, in this light, to think that balanced information and unambiguous corrections can counteract false rumors. Existing evidence suggests that this plausible thought should be taken with many grains of salt. If people are strongly committed to a rumor, and if they distrust those who deny it, they might not be much moved by the denial. The phenomenon of biased assimilation suggests that a reasonable debate can strengthen an unreasonable position and increase polarization. Even more strikingly, corrections can turn out to be self-defeating in the sense that they strengthen people’s commitment to their misperception. Here as well, strong prior convictions and asymmetrical trust are crucial. We do not yet have good evidence that the power of rebuttal, and increasing skepticism about rumors, will operate as a safeguard against acceptance of false rumors.I have said little here about how to respond to the existing situation, either through social norms or through legal institutions. The risk of a chilling effect must be taken seriously. But it should be plain that the marketplace of ideas will often fail to produce truth; the very mechanisms explored here ensure that any marketplace will lead many people to accept damaging and destructive falsehoods. A clear conclusion is that some kind of chilling effect on false statements of fact is important – not only to protect people against negligence, cruelty, and unjustified damage to their reputations, but also to ensure the proper functioning of democracy itself.
De lá pra cá nada de concreto foi feito. Reality has a well known liberal bias, bem sabe o campo conservador, que chiou já naquela época. Regulação é algo que atrapalha os negócios. E uma década depois, quando a coisa aparenta degringolar, a discussão de se fazer alguma coisa emerge em peso. Vêm à tona em função de algo possivelmente falso, as mentiras sinceras que confortam os derrotados por Trump. Mesmo pessoas interessantes, como Zeynep Tufcekci, cuja TED Talk sobre a distopia que está se construindo para vender anúncios vale ser vista, ou mesmo Scott Galloway, com sua leitura sobre as quatro grandes, caem no conto de que a eleição de Trump de alguma forma se deveu à Internet (sim, se deveu à desigualdade de renda, às empresas da internet enquanto componente da deterioração da situação econômica-social de vastos territórios e não à internet em si, seus usos, seus russos).
De minhas passeadas por posts, podcasts e palestras do Galloway, tem uma conclusão que tiro: a era das marcas morreu (ou melhor: ainda está subindo a escada da proverbial piada). A ideia de que você constrói um tipo de identidade cristalizada numa marca, num processo de marketing, no qual se atua de forma mais ou menos agregada (via canais), no qual se mede o consumidor de forma amostral/indireta (via pesquisas), torna-se obsoleta num momento em que big data permite um entendimento mais veloz, personalizado de cada indivíduo. Os processos de comunicação – unidirecionais, leituras – se tornam obsoletos, suplantados por processos de relacionamento – n-direcionais, interações.
Isso vale para a comunicação política, para os formatos de mobilização e proselitismo, isso vale para a brand BNDES e seus clientes. Neste sentido, há que se elogiar o entendimento visionário do Ricardo em relação à ADIG e ao futuro direto do produto BNDES Automático; e, ao mesmo tempo, se criticar o não entendimento da necessidade de preservação e cultivo da relação a três que existe nos produtos credenciados, como FINAME e Cartão, relação que hoje é quase sempre um swing com um agente no meio. Há que se entender que o esforço de comunicação existente, construído com olhos presos aos paradigmas de relações públicas/marketing, não resolverá o nosso problema com o seu médico que acha que o BNDES andou jogando dinheiro fora com as operações de exportação de serviços.
A moça do Broadcast do Estadão que esteve aqui semana passada usava o tempo todo apalavra imagem. Não sabia ela que dias depois misinformation (“false information that is spread, regardless of whether there is intent to mislead”) seria escolhida como palavra do ano pelo dictionary.com (bem, os meus (des)informação estão escritos há três semanas). Qual o sentido de desqualificar a ideia de marca/imagem num momento em que o Mito é eleito? Ora, um mito é a própria misinformation, o “when the legend becomes fact, print the legend”, pois “This is the West, sir“.
Neste tempo tudo o que era dos estados e estável se volatiliza, tudo o que era sagrado é dessagrado, e os homens são por fim obrigados a encarar com olhos prosaicos a sua posição na vida, as suas ligações recíprocas. O quarto poder – criatura do mundo industrial – convalesce, terminal.
Fecho, temporariamente, com um trecho d’outro Drummond do mesmo livro (“Omito”), profético, nesse momento de infundados temores do fascismo ter tomado o thymos de nossa República:
Mas, se tentasse construir
outra Fulana que não
essa de burguês sorriso
e de tão burro esplendor?