“O próprio imperador – esta alma do mundo – vi quando ele montou um cavalo em um reconhecimento. Realmente se experimenta uma sensação incrível ao contemplar uma pessoa que, estando aqui, neste lugar, montando um cavalo”
(Hegel)
VÍNCULO 1571 – O que eu já tinha lido no Twitter, visto no YouTube, indicava que o filme tinha problemas. Sabendo que haverá uma versão de mais de quatro horas, dava para antever que haveria buracos na trama. Ridley Scott, no entanto, quase sempre foi um ótimo cineasta, diretor de alguns filmes extraordinários. E o período napoleônico foi alvo de uma de suas mais interessantes obras, Os Duelistas. Mas o filme foi frustrante em muitos níveis.
Acho que sou uma das raras pessoas que não gostou de Gladiador. Embora muito bem filmado, é uma versão ainda mais fantasiosa do fantasioso “A queda do Império Romano”, um filme onde vários elementos extraídos da narrativa de Gibbon foram batidos no liquidificador sem muito critério. Em Gladiador, o que antes era uma história envolvendo bárbaros, decadência moral etc., virou uma história pessoal. E uma história pessoal clichê: um cara constrói um império, que quer deixar para um outro cara, portador de suas mesmas virtudes viris, cara que pega a sua filha inclusive. Mas ele tem um filho degenerado, que é seu herdeiro oficial, e esse filho fará derrubar seu império, mas a última hora esse filho é derrotado por esse outro cara… se a trama lembra a de O garanhão de Harold Robbins, eu diria que não é acidental.
Joaquin Phoenix esteve muito bem em Gladiador. Se feito no momento seguinte, aquele Joaquin Phoenix teria sido um memorável Napoleão: seu Cômodo tinha um ego de uma insanidade épica, Phoenix tinha a idade em que Napoleão começa sua meteórica ascensão. Teria sido um momento perfeito. Mas não foi. O Napoleão que se vê bebe muito mais do que foi Phoenix em Coringa do que Phoenix em Gladiador.
Só que Napoleão não é um loser para quem a glória cai acidentalmente, como Arthur Fleck. Napoleão é culminação da Revolução Francesa, o cavalo no qual ela baixa. Hegel, Beethoven, Goethe… todos em algum momento expressam Napoleão como a encarnação de espírito do tempo. E nisso o filme falha, pois o filme não retrata o tempo, não retrata a história. O filme sequer faz alegorias poéticas, sequer os espíritos estão presentes.
Eu tive a oportunidade de ver por duas vezes o Napoleon de Abel Gance. Várias horas para chegar na véspera da primeira campanha da Itália, primeiro de uma série de seis filmes que não vieram a ser feitos. Uma dessas vezes, com uma orquestra sinfônica no Caio Martins. Ali há mitologia, ali os fantasmas dos revolucionários alertam Napoleão de seu papel. Saint-Just, Robespierre, Marat, Danton… Na versão de Ridley Scott, os revolucionários são ridículos, indignos.
No Napoleão de Gance, a festa celebrando o fim do terror com aqueles que foram presos contém uma das cenas mais marcantes que já vi: um “baile de carnaval no Municipal” acontece, rodrigueano. Napoleão, alheio a tudo, joga xadrez. Aquela é uma das cenas que mais encarna o distanciamento que Krishna ensina a Arjuna no Gita. Há ali a grandeza do grande general, alheio à suruba ao redor, que só se mobiliza com a fulgurante chegada de Josefina. Neste filme, é só uma MILF em meio à festa, com Napoleão/Fleck numa tímida fascinação por ela.
Aliás, Napoleão era noivo quando conheceu Josefina. Nessa época Napoleão era Marlon Brando, e sua então noiva acabou virando sua concunhada e rainha da Suécia. Mas nada disso se passa no novo filme.
Tendo duas horas e meia para contar a história daquele que possivelmente é o personagem histórico mais importante do meio milênio da hegemonia europeia, muita eliminação de coisa relevante seria necessária. E isso não impede um bom filme. A questão é escolher os momentos marcantes, os momentos que sinalizem a trajetória do personagem, os cruzamentos onde ele escolheu um caminho.
Dois formidáveis exemplos neste século de como tratar um personagem longo e complexo reduzindo o âmbito do que é tratado:
– Steve Jobs, roteiro do mesmo Aaron Sorkin que nos deu A Rede Social, direção de Danny Boyle, que conta os minutos que antecedem três apresentações marcantes do personagem, tendo elementos de sua vida pessoal como pano de fundo.
– Lincoln, roteiro de um Tony Kushner que é apenas o autor de Angels in America, com direção de um tal de Spielberg. O filme trata de uns poucos meses em que a guerra ainda acontece e Lincoln finalmente faz passar a abolição. Suficiente para uma interpretação definitiva do personagem histórico, Daniel Day-Lewis recebendo seu terceiro Oscar de Melhor Ator.
Não espere nenhuma frase grandiosa, nenhum discurso mágico de Napoleão no filme. Mesmo a cena onde Ney parte para buscá-lo quando ele chega em França retornando do exílio… cadê o Marechal Ney na cena???
Esse é um dos problemas. Uma forma de contar a história de Napoleão seria contando-a com seus parças, os Marechais do Império. Alguns deles acompanham Napoleão da Itália até Waterloo. Ney, por exemplo, foi quase sempre a retaguarda do La Grande Armée. Diz a lenda que ele foi o último homem a sair da Rússia. Lannes, que morreu na batalha de Aspern-Essling em 1809 (não há uma menção sequer a esta guerra, em decorrência da qual Napoleão arrumou sua esposa austríaca), vanguarda de todas as grandes campanhas até aquele momento. Berthier, que se como comandante era medíocre, com chefe de staff possivelmente foi o mais importante de todos os marechais: era ele que traduzia as determinações táticas de Napoleão em ordens específicas chegando em tempo hábil para serem executadas. Murat, seu cunhado, Rei de Nápoles.
Se os marechais não são mencionados, o que dirá de Eugène de Beauharnais, que aparece quando garoto como filho de Josefina, mas não é mencionado como o Vice-Rei da Itália comandando um dos corpos na Batalha de Borodino. Aliás, junto com Davout, possivelmente o mais talentoso dos marechais, ele é um dos que tentam convencer Napoleão a não fazer um assalto direto, mas flanquear o exército de Kutuzov. Eugênio se transformou de um menino a serviço da mãe num bom governante e general. Napoleão em Borodino fazia o sentido contrário, perdendo momentaneamente a sutileza que fizera dele um gênio. Pense, caro leitor, nas jornadas de herói perdidas nessa história.
Pense no outro lado, em um Napoleão que vinha da artilharia, que sabia fazer contas, que tinha em Fouché e Talleyrand os ancestrais de um estado contemporâneo, que produziu leis que transformaram o mundo. Pense também na relação com seus irmãos, de como a sua desgraça começa não com a Rússia, mas com a imposição de José como rei da Espanha. Quem é Wellington sem a Espanha? E cadê Trafalgar, cadê Nelson a impor a primeira derrota estratégica de Napoleão?
Aliás, pequena nota: quem dizimou o Grande Armée foi a doença. Há um extraordinário infográfico do século XIX, uma obra de arte de data science, o Gráfico de Minard, no qual vocês poderão entender o que foi a invasão.
Não, não é um bom filme. Não há poesia, não há épico, não há sequer respeito. Não há frases a serem repetidas, sunt lacrimae rerum da revolução definitivamente perdida na corrupção do coração dos homens. Não.