Não haverá um equívoco em tudo isto?
O que será em verdade, transparência
Se a matéria que vê, é opacidade”
(Passeio, Hilda Hilst)
Amiga,
Você não está por perto para que de janela em janela eu te conte esta insana semana. Pegue um café que vou montar, dos réchauds de acontecidos, um prato com explicações que talvez façam um sentido maior, talvez ao menos entretenham o movimento imperceptível dos seus lábios por uns dez minutos. Certamente, vai faltar coisa, acontecimentos meio crus, como os atos de violência tanto aqui quanto nos EUA, mas deixarei essas violências para outro momento, quando se puder entender melhor o que se passou com os médicos visitando o Rio.
Sei que você gostaria que eu avançasse sobre o caso de Marcelle Decothé, cujo Retorno de Saturno envolveu a cabeça sendo ceifada por sua junção de um discurso identitário excludente com paixão flamenguista. Eu sou do tempo em que torcidas de futebol cantavam “rema, rema, rema remador, vou botar no…”, ao mesmo tempo em que um Maracanã lotado de botafoguenses e vascaínos se irmanava a aplaudir o então candidato a deputado federal Agnaldo Timóteo, um homem liberado como ele se definia. Digamos que não é para se tomar literalmente o que uma pessoa berra numa partida de futebol… mas fazê-lo no X, em viagem oficial, isso fere algumas sensibilidades… e uma coisa chamada decoro. Nesse sentido, contraste-se com a rigorosa correção de Silvio Almeida. Uma jovem habitante dos mundos de Reddit e Tumblr argumentou comigo que, mais do que Flávio Dino, um grande nome para candidato a presidente seria Silvio Almeida. O que me surpreendeu foi que a explicação não se centrava em um argumento identitário. Silvio, segundo ela, teria a virtude de discutir com as pessoas de uma forma educada, não agressiva, e esse talento dele de se manter calmo e polido ante às formas mais deslavadas de estupidez faria dele um grande candidato. E que, como ministro dos Direitos Humanos, ele poderia avançar muitas causas importantes. Uma pena que parte de seu ministério foi entregue a um outro, composto por militantes do PSOL, um PSOL com O de ONGs e S de Soros.
Mas roubando uma observação que li em algum canto da profusão de mídias do Rômulus Maia, Marcelle, que finalmente me fez entender a utilidade do curso de graduação de Defesa e Gestão Estratégica Internacional da UFRJ, libertou de vez o presidente Lula da pressão de nomear uma mulher negra para o lugar de Rosa Weber. Ao que tudo indica haverá um ou outro gritando “não é a mamãe!”, quando Flávio Dino da Silva Sauro for assumir a vaga de Rosa no STF. Já escrevi aqui uns meses atrás (“O veado e as lebres”) que Flávio Dino como ministro da Justiça é um erro político. Mas Flávio Dino como ministro do STF vai ser a mais perfeita das nomeações que Lula terá feito em sua vida. Flávio Dino tem uma sagacidade rara, um senso de humor avantajado, um vasto conhecimento jurídico prático, e muita inteligência. Na minha visão, embora ele esteja indo para o lugar de Rosa Weber, no fundo ele vai substituir Gilmar Mendes. Dirá você: mas Gilmar só sai nas vésperas da posse do presidente que virá a substituir o reeleito Lula de 2026? Ao que respondo: mas por que esperar tanto tempo? Por que dar sorte ao azar?
Gilmar exerce um papel positivo de extrovertido praticante de bulling e deboche sobre as incoerências, inconsistências e irrelevâncias cometidas por seus colegas. Gilmar tem seus vieses claros, conhecidos. Dino é outro com esse potencial, esse conjunto de virtudes, essa capacidade de vir a cobrar pelo “juiz de garantias” da vez de forma irritantemente constante. Os anos em que os dois, tudo correndo bem, estarão juntos no STF, serão sete divertidíssimos anos.
Esta semana, talvez prenúncio do eclipse solar do dia 14 entenderiam os antigos, o presidente da Câmara dos EUA foi derrubado por uma pequena minoria do seu próprio partido. Por quê? Ah, isso é uma história bem mais enrolada do que se possa pensar, onde aqueles que são tidos como vilões são, no meu entender, os mocinhos da história.
Lembra quando eu tratei da eleição americana em “Abortos”? Pois a consequência de uma pequena maioria é que qualquer minoria significantemente firme dentro dela pode exercer poder de veto. E se a esquerda do Partido Democrata, em sua covardia, não foi capaz de lutar pelas pautas que a elegeram (a criação de um arremedo de SUS nos EUA), há uma minoria engajada do Partido Republicano que insiste em atender as pautas que a elegeram, as pautas que o eleitorado quer. Não, não são pautas do tipo proibição de aborto, pautas clichê que servem para você se manter na confortável posição de “moralmente superior”… e politicamente derrotado. Não, o que o eleitorado MAGA quer é transparência no orçamento, accountability no que está sendo dado à Ucrânia, fronteiras vigiadas, suspensão de uso do aparato federal para perseguir os adversários do regime Biden e uma apuração de fato do que aconteceu no 6 de janeiro, do quanto de negligência/infiltração das forças de segurança havia ali.
(Pequena digressão: ao contrário da quase unanimidade dos demais progressistas desta terra, entendo que o 6 de janeiro é uma versão americana do tipo de fraude que foi cá a Lava Jato. Assim como não caí nos contos de Moro e Bretas – e teve amiga quase brigando comigo por insinuar que havia excessos legais na forma como os figurões canalhas do PMDB do Rio foram sendo presos – não caio nos de Pelosi e Schumer, de Garland e dos que controlam o teleprompter de Biden. Se uma eleição normal houver ano que vem nos EUA, coisa da qual eu não tenho mais tanta certeza assim, talvez 2025 nos traga a mãe de todas as Aleteias).
McCarthy foi eleito com esse compromisso, mas tirando uma liberação de vídeos que desmontava com a narrativa de insurreição, nada de concreto foi feito. A gota d’água foi a aprovação emergencial do aumento do nível de endividamento sem dinheiro novo para a Ucrânia ao mesmo tempo em que, por baixo dos panos, um acordo foi feito com a liderança democrata para logo, logo votar um adicional resolvendo essa pendência.
Essa base quer cortar o dinheiro que permite ao FBI funcionar, quer paralisar um FBI que de fato está sendo usado contra eles. Quer suspender o dinheiro para uma Ucrânia cuja corrupção é reconhecida, nas encolhas, como o mais grave dos problemas de percepção pelo próprio governo Biden. Mas entre o que o eleitorado (e seus porta-vozes) quer, e o que interessa aos doadores de campanha, a democracia americana acaba sendo uma plutocracia. E estes pouco deputados são o veículo desta revolta contra uma plutocracia do “tem que manter isso aí” de um gasto militar hoje inútil, barroco.
Como se sairá dessa embrulhada? Não faço ideia. A cada dia que passa o desespero da plutocracia com o crescimento de Trump nas pesquisas se torna maior. Não sei se a tentativa de se construir uma alternativa populista para esvaziá-lo – o lançamento de uma candidatura própria de RFK Jr – será o suficiente para impedir a eleição de Trump. O fato é que é difícil acreditar que Biden venha a ser candidato, e que mesmo a hipótese de ele renunciar à candidatura na Convenção Democrata no meio do ano que vem permita que um candidato alternativo viável venha a acontecer. O governador da Califórnia, que esta semana cumpriu uma promessa de campanha e indicou uma mulher negra para um mandato tampão no Senado (uma notável operadora política, embora sem nunca ter concorrido), é tido como um dos favoritos a substituir Biden. Mas tudo que o torna mais forte na base democrata, o enfraquece perante os independentes. Kamala… cronicamente odiada, pouco provável. Há quem aposte que Rosinha… perdão, Michele Obama será a candidata democrata. Já pensou um mundo bizarro onde há Michele Obama nos EUA e Michele Bolsonaro no Brasil em 2027? Seria mais bizarro do que se tivéssemos a dupla Milei-Ciro comandando o Mercosul com seus destemperos emocionais e verbais? Acho que não.
Mas fico por aqui, com dois registros:
– Esta semana começa o FestRio. Se não houver artigo na semana que vem é que estou na tentativa de igualar meu recorde de seis filmes em um dia num festival de cinema. Vá ao cinema!
– Há uma campanha para que se faça do dia 25 de outubro o Dia da Democracia. Esta é a data do assassinato de Herzog, um dos momentos em que a ditadura militar entendeu que sequer controle sobre si mesma ela tinha, um dos momentos para entender quão subversiva é a liberdade de imprensa para um regime autoritário. Considere esta bela causa.
Beijos, carinho.