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O Retorno de Lula Ascendente, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

Imagine no possessions
I wonder if you can
No need for greed or hunger
A brotherhood of man”
(John Lennon)

Num certo sentido, este texto é continuação do da semana passada, uma discussão não rósea sobre futuro que não envolve clima. Noutro, trata-se de algo distinto pois não estarei mais no rigoroso campo da cliodinâmica.

E para isso comecemos com o discurso do presidente Lula na ONU. Algo de uma brutal diferença com a inacreditável peça de anticomunismo de WhatsApp proferida pelo então eleito Bolsonaro na mesma ONU em 2019. Algo de uma singela beleza e humanidade que remete a coisas como… a letra de Imagine? Assim como Mandela um dia, Lula é uma quase-unanimidade mundial. Pode se ver nisso o grande soft power que o Brasil tem, especialmente o Brasil presidido por Lula, essa pessoa adorável, essa manifestação da alegria brasileira que Lula discursando encarna.

A crítica ao neoliberalismo, à uberização do trabalho, ao desemprego de jovens, à corrosão dos direitos, à precarização… há toda uma crítica muito bem colocada à globalização no discurso. Há toda uma sinalização de agendas globais das quais o Brasil será anfitrião nos próximos anos. Quem quer que seja a equipe que construiu esse discurso, fez um belo trabalho nesse ponto.

Posso, no entanto, ouvir com meus ouvidos de cínico. O discurso de Lula é lindo porque, no fundo, irrelevante. Ele é incapaz de ferir alguém de fato. Nada do que está dito ali tira o Brasil de seu maravilhoso muro, de ser ao mesmo tempo BRICS, ao mesmo tempo parça de Biden.

Há nele um resgate dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável como se isso não fosse uma pauta morta com a crise que a Europa passa e irá passar. Essas nações ricas de hoje, os G7 e OCDE da vida, com cujas doações funcionaria esse sistema de transferências sonhado pelas burocracias envolvidas nesse projeto, têm acertos de conta a fazer com suas populações, que têm pela frente uma desindustrialização associada à descontrolada migração ilegal que acontece hoje. Coagir a Itália já é algo difícil; conter uma Alemanha onde o AfD já é o segundo maior partido nas pesquisas, será muito mais complicado. Pergunte para o prefeito democrata negro de Nova Iorque se os imigrantes são bode expiatório ou uma “crise que irá destruir a Cidade de Nova Iorque”?

Um dos problemas de um mundo no formato Imagine é que ele é profundamente inocente em relação à política e ao poder. Pegue-se o caso da África, para quem o FMI não criou dinheiro. Quem é o governo em boa parte daqueles países? Quais as condições de governança desses recursos, qual a estabilidade desses governos quanto a golpes ou conflitos étnicos? Funcionaria de fato para eles seguir os ditames neoliberais de FMI e Banco Mundial? Ou será que alguém acredita que de uma hora para outra o FMI faz uma pirueta ideológica e vira algo generoso, preocupado com algo que não a estabilidade financeira mundial?

Sendo cínico com o meu próprio cinismo, eu poderia perguntar: sim, mas será que o Brasil tem essa autonomia para questionar a ação dos EUA em algo que não seja um assunto simbólico, como a detenção de Assange, por exemplo? É muito fácil para os RICs, na Eurásia, afirmarem sua autonomia em relação aos EUA, mas um país nessa longitude onde estamos tem uma situação bem mais complicada, e põe bem mais nisso. Nesse sentido, sem ser o surto a Milei de Bolsonaro durante Trump em 2019 (em 2022, Bolsonaro mesmo que ainda Bolsonaro, foi bem mais comedido), difícil o Brasil fazer um discurso que não seja centrado, contido, otimista, apontando para o que é a agenda dos aparatos diplomáticos (que não é propriamente a agenda de governos e países).

Há que se lembrar que é o Brasil que tradicionalmente faz esse discurso de abertura da ONU. Isso implica que todo mundo está lá ouvindo nosso presidente falar. Isso implica que ele dá o tom inicial do que será o evento. Ser responsável, visionário, alinhado com uma pauta de consenso e progresso nos termos das Nações Unidas – e não fazer uma peça de campanha para consumo político interno – é uma das obrigações deste país, de nosso presidente. Este é um soft power deste aliado menor das nações que derrotaram o Eixo – e há que se lembrar com orgulho que nós fomos uma delas –, um meio termo entre as nações convidadas a fundar a ONU e as cinco potências que compuseram o Conselho de Segurança (um dado curioso é que além da URSS, as repúblicas socialistas da Bielorrússia e da Ucrânia foram membros fundadores da ONU).

Qual o problema, então? Voltemos ao futuro. Estamos na década de quarenta deste século e olhamos para a história das duas décadas que antecederam.

Como se resolveu a crise da Ucrânia? Foi por uma lenta derrota militar ucraniana, processo durante o qual o sistema político europeu desmoronou, com vários partidos antissistema assumindo o poder e pondo agendas centradas no espaço nacional na frente das agendas de globalização? Foi por conta de um segundo governo Trump, o que levou ao colapso da OTAN, a um acordo apressado que resolveu a guerra, no qual os mesmos europeus tiveram que encarar sua irrelevância? Em qualquer um dos caminhos, a Europa perdeu o que restava de centralidade.

Como os EUA resolveram sua crise interna, sua divisão? Os democratas conseguiram manter, mesmo que intermitentemente, o poder ao longo deste par de décadas, sendo o que remanesce das elites corporativas do Partido Republicano bem-sucedido em transformar a direita Make America Great Again em mais uma passagem controlada e caricata da história, como conseguiram fazer com o Tea Party? Ou virá algum vendaval, como foi o New Deal, no qual a realidade de uma economia desesperançada e em crise faz com que o partido dos interesses corporativos seja derrotado, e um período populista rearranje os EUA e restaure sua capacidade produtiva?

E o edifício de instituições dos BRICS? Ele assumiu o lugar de fato de controle da ordem mundial, tornando as instituições do neoliberalismo como o BIS e o FMI algo de baixa relevância? Uma pauta de combate à “desigualdade” movida por um sentimento de “justiça” combina com o pragmatismo de árabes e chineses, com estados para os quais negócios e desenvolvimento vêm na frente de qualquer pauta moral?

E o emprego? Algum tipo de fordismo pôde ser recriado num mundo onde o digital com suas (d)eficiências tomou controle de tudo? A pauta que Biden e Lula (se é que ele tem alguma consciência do que estava fazendo com Lula) celebraram tem capacidade de frutificar num novo mundo de relações de trabalho menos predatórias? Neste sentido, supondo a nossa neoindustrialização funcionando, o que será a década do pós-Lula num momento em que novas elites foram criadas? Qual essa política onde a figura em torno da qual, seja como governo, seja como ameaça, a política brasileira funcionou por quatro décadas, do final de 1989 até sua saída em 31, já nonagenário em 1934?

Para além dos quadradinhos de aqui bem/aqui mal, fora bem/fora mal, há uma árvore extremamente complexa de futuros a ser explorada. Há ambiguidades sequer verbalizadas. Mas há caminhos nos quais estamos hoje que não chegarão a lugar nenhum. O Turchin faz uma piada no livro de que Walter Scheidel, o autor de “The Great Leveler: Violence and the History of Inequality from the Stone Age to the Twenty-First Century”, só está certo em 90% dos casos. O argumento do Scheidel é que a coisa que produz igualdade são os quatro cavaleiros do Apocalipse. Qual seja: a esperança lennonista não tem lugar na história.

Aproveitemos os benefícios de termos a estrela de Lula, com seu carisma, na presidência. O que conseguirmos extrair desse trânsito é a possiblidade de transformar este país para algo bem melhor.

Associação dos
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