Pular para o conteúdo Vá para o rodapé

Para onde vai esse Carro?, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

“The only survivor of the National People’s Gang
Panic in Detroit, I asked for an autograph
He wanted to stay home, I wish someone would phone”

(Bowie)

VÍNCULO 1588 – E eis que aquilo que foi profetizado muito tempo atrás finalmente parece que irá acontecer.

Não falo do carro da Samsung. No fim dos noventa a Samsung resolveu que entraria no mercado automobilístico. Veio a crise da Coréia em 1997, e o negócio foi adiado e, depois transformado numa participação minoritária com a Renault. Concretamente, o carro era um Nissan, e na época a Nissan também foi salva pela Renault. Há um detalhe que as pessoas esquecem sobre a indústria automobilística francesa: eles fazem ótimos carros. A sofisticada engenharia dos Citroën é lendária. Mas o primeiro carro a ter cinco estrelas no teste europeu de segurança de passageiros foi o Renault Laguna, no início deste século. Há outro pequeno detalhe na Renault, que se tornou um pouco maior em certo momento por conta de um jovem ministro da Economia que acabou virando presidente, um tal de Emmanuel Macron: o Estado é acionista. Mas a Samsung acabou saindo do negócio. A Hyundai, que tinha aversão à Samsung, e que é praticamente monopolista na Coreia, certamente não facilitaria uma reentrada. Havia quem achasse possível, havia quem achasse difícil um futuro retorno. Afinal, a Apple…

Não falo do carro da Apple. Por uma década o que seria a grande revolução automobilística, o carro da Apple, assombrou as noites da indústria. Dez anos depois, o projeto finalmente foi encerrado. Há aqui, nesses links do Techcrunch e do Macrumors, boas e compactas histórias desse processo. Registre-se que o “Mercado” ficou feliz porque o investimento foi cancelado: 10 bilhões de dólares de missão não cumprida e dois mil trabalhadores “redirecionados”. A ideia (a qual, otimista, até eu acreditava) de que os carros autodirigidos viriam lá por 2020, fazendo a grande revolução na mobilidade de pessoas e produtos, mostrou-se ainda distante. Como os reatores de fusão nuclear, ou o check-out das lojas físicas da Amazon (feito por indianos remotos, os oompa-loompas do digital).

Se nem Apple nem Samsung conseguiram, quem está dando o salto de ser uma empresa de eletrônica se transformando em fabricante de automóveis? A Xiaomi. A Xiaomi lançou um carro para competir com o Model 3 da Tesla (na verdade, digamos que o carro é “muito inspirado” no Porsche), um lançamento que fez a ação da empresa subir 16%.

Uma empresa chinesa fez aquilo que a Apple não conseguiu. Em três anos. Registre isso, amiga leitora.

O modelo de automóvel mais vendido do mundo no ano passado foi um carro elétrico, o Tesla Model Y. O Corolla ficou em segundo. Perto de um terço dos veículos vendidos na China ano passado foi elétrico ou híbrido – veículos que podem ser carregados (o que quer dizer, preferencialmente elétricos). Espera-se que mais de 40% esse ano sejam nessa categoria de Novas Energias, a maioria deles sendo puramente elétricos. A BYD é a maior empresa nesse setor, já superando a Tesla a nível mundial mesmo no campo de veículos puramente elétricos. Há um pânico generalizado com os carros chineses, e com o modelo barato da BYD especificamente. Não só nos EUA o pânico, mas na Europa em desindustrialização (mas há os húngaros, esses de governo autoritário de direita, que estão recebendo uma fábrica da BYD).

Enquanto isso, numa terra mágica, tão far far away que neste redondo mundo chega a ser aqui, os investimentos acontecem. A Renault nos vê como muito importantes, investindo para produzir aqui os mesmos carros para países não assim tão ricos, como é o nosso caso. Carros convencionais, no caso.

Mas buscamos a modernização. O governo resolveu que irá proMOVER (programa nacional de Mobilidade Verde e Inovação) essa modernização, que se articula com os planos da Nova Indústria Brasil.

Buscamos um modelo próprio de desenvolvimento, voltado para o grande potencial que temos de liderar a transição para uma economia verde, o carro híbrido a etanol. Assim prega o presidente Mercadante.

Há uma guerra acontecendo no momento, guerra na qual temos uma bela coalizão, que vai se configurando vitoriosa, envolvendo as empresas automobilísticas estabelecidas no país, o setor sucroalcooleiro e os sindicatos do ABC. Todos esses têm um interesse bem claro na transição para um modelo que envolve um carro híbrido com um motor à explosão a etanol (ou, não sejamos radicais, quem sabe flex?).

Querida leitora, você lembra das TVs com tubo de imagem? A LG parou de fabricá-las em 2010 na Coreia, mas continuou em outros lugares por mais uns anos. Minha modesta impressão é de que o carro híbrido a álcool é, nesse momento, uma TV de tubo de imagem na primeira década deste século. A manutenção de um caminho que não vai dar em nada em nome da defesa de uma série de interesses constituídos no “tem que manter isso aí”™. Por quê? Porque o motor de combustão interna é uma máquina complexa de se produzir e ineficiente, como era um tubo de imagem. E em extinção.

Considere também que Bolívia, Argentina e Chile, países de nosso próprio continente, são respectivamente a primeira, segunda e quarta maiores reservas mundiais de lítio, a principal matéria prima da confecção de baterias. Qual a razão mesmo para estarmos buscando esse caminho de “neoindustrialização” se mesmo nossos vizinhos vão em outra direção?

Não ache que sou definitivamente contra essa escolha. Há uma beleza nela, uma beleza não explicitamente explorável porque vai na contramão do discurso primário e exportador com que se encara nossa economia e a autonomia desta. O complexo da cana dá uma autonomia energética ímpar ao país. Tá, é uma autonomia que vai na contramão até da integração sul-americana, mas é uma autonomia.

Mas se é uma autonomia, olhemos por um outro lado. A BYD recrutou mais de 30 mil recém-formados ano passado, 80% para P&D. Três quintos com mestrado ou doutorado. Quantos engenheiros essas empresas multinacionais, que farão os veículos de nossa autonomia energética, estarão contratando? Por acaso este país forma, por ano, nesses campos de engenharia e informática capazes de atuar no desenvolvimento de automóveis (o que dificilmente inclui engenheiros civis, por exemplo), sequer a quantidade de pessoas que a BYD contratou?

Esse é um conjunto de problemas a ter em mente, especialmente porque, ao fim e ao cabo, as decisões de investir dessas empresas não serão tomadas aqui, mas passarão pelas crises em suas matrizes. E elas estão vindo, a desindustrialização a passos largos da Europa, os EUA cujo reshoring não passa ainda de uma intenção.

…………………………………………

► As opiniões emitidas nos artigos assinados são de responsabilidade de seus autores e não refletem necessariamente a opinião da AFBNDES ou do BNDES.

Associação dos
Funcionários do BNDES

Av. República do Chile, 100 – Centro, Rio de Janeiro – RJ, 20031-170

E-mail: afbndes@afbndes.org.br | Telefone: 0800 232 6337

Av. República do Chile 100, subsolo 1, Centro, Rio de Janeiro – RJ, 20031-917
E-mail: afbndes@afbndes.org.br
Telefone: 0800 232 6337

© 2024. Todos os direitos reservados. Desenvolvido por: AFBNDES

×