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Técnica e Política

Paulo Moreira Franco – Economista do BNDES

Tragedy is when I cut my finger. Comedy is when you fall into an open sewer and die.” (Mel Brooks)

Vínculo 1301 – Técnica e política, entre elas, qual elo há? Qual obscurece, mascara-se pela outra? Qual se prostitui, qual se pressupõe pura? Quanto são Batman e Coringa, quanto Clark Kent e Kal-El? Qual nos ilude, a qual aludimos nos momentos de desespero – ou nos de embromação?

Bem, não tratarei de Weber. Discutir a ciência no Política como Vocação (e vice-versa) foi exercício de três décadas atrás, quando, piamente, eu ainda acreditava em números, juízes… não, não é para entrar neste buraco que convido-os a esta pílula vermelha.

Duas palestras recentes: uma discutindo o setor elétrico; outra, a efetividade do Banco. De cada uma delas, alguns fragmentos para esta reflexão.

Na extremamente vazia palestra organizada pela AFBNDES sobre o setor elétrico, sintoma do desinteresse que afeta o Banco e a sociedade brasileira (se é que tal coisa existe) neste momento, uma pergunta da plateia pressupõe que a discussão de desestatização, controle societário e regime regulatório seria uma questão “técnica” – e que ali as pessoas estavam contaminando o debate com uma discussão “política”. Técnica, neste sentido, num sentido muito comum de ser utilizado por pessoas da nossa classe e de nossa instrução, quer dizer práticas justificadas por nosso credenciamento educacional as quais não estamos abertos a discutir – e cujas implicações para com os outros nós convenientemente pensamos como efeito-colateral, imperfeições no modelo etc. – e de preferência com as quais trabalhamos. Quão mais próxima de nossas mãos, mais técnica. Política, neste sentido, quer dizer uma ingerência de alguém que não julgamos qualificado, portador da mesma Verdade que nós sabemos verdadeira – quase sempre de fora. Política é algo arbitrário, desqualificado. Técnica é a palavra que justifica o nosso “você sabe com quem está falando?”.

E no caso isso se dirigia a um funcionário de estatal que no momento ocupa uma posição sindical. O que é outra coisa muito peculiar dessa visão do mundo técnico: o cara que se desloca para funções sindicais, embora possua o mesmo credenciamento do restante dos funcionários, é visto como um ator político. Se posto em alguma função, ó crime dos crimes, uma indicação política absurda! Já o carreirista clássico, aquele que gasta seu tempo construindo suas redes de sociabilidade, demostrando sua fidelidade à intepretação que atenda a quem está acima, esse é o gestor. O bom gestor tem dinamismo, flexibilidade para flutuar guiando o timão de sua técnica, e como dizia Marx, “Those are my principles, and if you don’t like them…well I have others.

O que nos traz ao primeiro deserto: a tal da “técnica” é quase sempre uma confortável ilusão, uma utilização de uma ferramenta invariável (os números) para lidar com o desconhecido (a história). Essa passagem de um interessante discurso do Bruno Latour (num evento patrocinado pela cerveja Carlsberg) expressa melhor do que eu poderia escrever:

Thesis 2: Economics, as a discipline, has helped format local forms of “market organizations” which are entirely mundane, makeshift affairs depending so much on culture, law, and geography that they should not, in any circumstances, be trans-formed into a “system” and especially not into a “natural” system. The word “law” in the “laws of economics” should be understood as in “civil laws”, that is as a highly revisable affair in the hands of a polity. Not as a law of a transcendent world in the hands of an invisible deity.”

Há questões técnicas que envolvem processos decisórios – ou trata-se de pura política? Depende do observador, depende das ilusões em que ele habita. Nas minhas, a questão técnica central é como permitir de forma não cataclísmica que a inovação aconteça. Como não acredito na ilusão dos mercados – e como a produção/consumo de energia é um processo rivalexcludable, geograficamente localizado – o Estado me parece claramente ser o agente capaz de operar isso. Por que o Estado? Porque é o único agente para quem o custo afundado do sucateamento de capital necessário ao avanço tecnológico que o aquecimento global impõe não será fatal. Uma empresa privada não o fará. Não por maldade, mas por sua própria sobrevivência como ente contábil. Um Estado Nacional, a menos que sujeito a estupidez de uma austeridade autoimposta, tem a possibilidade de fazê-lo. Isso é técnico, isso é político, é azul e preto ou é branco e dourado? Na minha ilusão, técnica há na interação entre os ciclos dos novos renováveis (como solar e eólica) com hidrelétrica e térmica, com a inclusão de sistemas de estocagem de eletricidade que começa a se avizinhar como possibilidade tecnológica. Como renda será extraída disso, definitivamente, é uma questão de poder – e não de física ou química. Política.

(Para os que habitam o mundo onde se enxerga o parágrafo acima, que se empolgam com coisas como internet das coisas, que acreditam que outro formato de organização da sociedade é possível, sugiro Sociedade com custo marginal zero, do Jeremy Rifkin. Que é um cara cujos palpites costumam ser ouvidos por gente assim tipo Angela Merkel. Ou dar palestras sobre futuro para o Banco Central… Europeu.)

E poder, definitivamente, era o representante do TCU trazendo suas platitudes no evento de Efetividade. Na primeira parte, antes da discussão do relatório propriamente dito, dois palestrantes externos: um flexian (que inclusive já passou pelo Banco) e um “oficial” do TCU. Este trazia – como antes o fizera um comandante de sua organização sobre o qual pairam acusações um pouco mais graves do que sobre aqueles de cá que foram conduzidos, comandante o qual visitou nosso auditório sob a hospitalidade pragmática de Rabello – o dictat do TCU sobre a Efetividade.

Quis custodiet ipsos custodes? Quais as consequências para alguém do TCU, do MP, da Polícia Federal, do Judiciário, que pratique seu fiat justitia, ruat caelum? Nenhuma. Como alguém acha que Efetividade (se é que tal coisa existe e pode ser medida – não no mundo em que habito, mas isso é outra história) no dos outros é refresco, mas que ela não é afetada pela consequência de seus atos sem accountability, qual seja, em bom português, atos pelos quais eles não são responsabilizados? Simples: cinicamente julgando seus atos como protegidos pela técnica. Neste sentido, o representante do TCU veio com o papinho sintomático do burocrata sem nenhum respeito à sociedade tal como constituída em suas instituições: o “de Estado”, como se burocratas públicos servissem a algum Pedro III, a um Brasil imaginário que não o Conselho de Ministros, um Presidente da República eleito (sabe-se lá como) ou imposto. Dica: se alguém usar “de Estado” para se referir ao que faz, esse alguém está querendo sinalizar a sua intenção de fazer o que bem entende ao invés de aquilo que esferas que lhe são superiores determinam.

E aqui entramos no outro deserto: a tal da “técnica” é quase sempre um instrumento de poder travestido de números, sinalização hierárquica ao invés de entendimento. E essa passagem de um interessante discurso do David Graeber expressa isso melhor do que eu poderia escrever:

Bureaucratic knowledge is all about schematization. In practice, bureaucratic procedure invariably means ignoring all the subtleties of real social existence and reducing everything to preconceived mechanical or statistical formulae. Whether it’s a matter of forms, rules, statistics, or questionnaires, it is always a matter of simplification. Usually it’s not so different than the boss who walks into the kitchen to make arbitrary snap decisions as to what went wrong: in either case it is a matter of applying very simple pre-existing templates to complex and often ambiguous situations.

Efetividade policialesca do Sistema U se reduz a isso: um entendimento estático, passado, arbitrário do mundo. Em função disso, da negação do que de fato pode ser efetividade num mundo dinâmico, a liberdade e/ou a propriedade (que sob certos entendimentos são a mesma coisa) de pessoas podem ser revogadas. Reiterando, retornando ao Graeber:To be more precise: violence may well be the only form of human action by which it is possible to have relatively predictable effects on the actions of a person about whom you understand nothing.

Escapar da ditadura da “técnica”, retomar o poder do demos, é o grande conflito do mundo contemporâneo, a razão das surpresas eleitorais que estão acontecendo pelo mundo afora. Ilude-se quem achar que aqui isto não aconteça, e que a ditadura da “técnica” na forma dessas burocracias que respondem a ninguém (ou a questionários, o que basicamente é a mesma coisa) é o que a pluralidade dos habitantes deste país quer.

Neste sentido, nesses próximos seis meses, há que se entender que aqui há habitantes deste país, que as pessoas não são máquinas-éticas subordinadas à ditadura da “técnica” tal como estabelecida pelo status quo vigente (seja lá o que isso quer dizer neste momento tão peculiar da vida nacional), e que isso se manifestará de alguma forma, de muitas formas, de imprevisíveis, por vezes desagradáveis, formas. Longe de podermos nos constituir como Multidão, a capacidade de respeitar essa diversidade de discursos é a própria possibilidade de sobrevivência desta instituição sem maiores traumas. A unidade que querem forçar os que se escondem atrás de etiquinhas e etiquetas só resultará em futuro de mais uma ponte partida pela ressonância.

Entre Boulos e Bolsonaro há todo um espaço a ser pensado, pregado, pranteado, apresado. Entre Bolsonaro e Boulos, escutem, engajem-se, não se enganem: a apatia é a única coisa em que nossa coletividade – cada um no seu caminho – não pode apostar no momento.

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