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Demarcações de Lula, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

“Os trabalhadores ‘sairiam do controle’ e os ‘capitães da indústria’ estariam ansiosos para ‘ensinar-lhes uma lição’.”
(Kalecki)

Num momento em que as pesquisas apontam uma queda de popularidade do presidente Lula (o que faz sentido dentro do momento do ciclo político que estamos: prefeitos eleitos empossados não faz sequer seis meses e eleição para presidente/governadores só acontecendo no final do ano que vem), entender as eventuais raízes arrancadas nessa queda parece ser algo relevante. Mas deixo para algum Alberto Almeida da vida fazer isso: mergulhar nos dados de pesquisa, cruzar com outros tantos dados demográficos, construir uma hipótese do que haja de sólido nessa movimentação da opinião pública. Certamente as amarras que o setor público carrega hoje em função de questões fiscais interferem nessa movimentação. Certamente as movimentações que acontecem em nome do Centro e da Direita têm seu peso, mas acho que é cedo para se discutir isso. A menos, claro, se você for um formulador do governo ou das oposições.

Eu vou tentar aqui algo que nem sei dizer se é mais simples ou mais complicado: um entendimento do presidente Lula. Muita gente séria discutiu o lulismo, muita gente do campo progressista (e nem tanto) faz suas críticas (relevantes) aos compromissos de esquerda do presidente Lula. Não pretendo julgá-lo, não pretendo entender o que ele representa. Essas críticas, muitas vezes pertinentes, partem do entendimento de mundo que as pessoas têm em contraste com as ações de Lula. Eu vou tentar uma outra coisa: quais, tal como percebo, são alguns elementos de como Lula entende o mundo e como isso molda a sua ação.

Lula pode ser um político por praticamente meio século. No entanto, em sua percepção de mundo, Lula é um trabalhador. Ele mede o mundo sob a perspectiva de um trabalhador. Não do conjunto dos trabalhadores enquanto um agregado estatístico. Não sob a perspectiva de um trabalhador mediano, também um movimento que acontece em boa parte sob a modelagem estabelecida por nós, cientistas humanos. Digamos que ele entenda o mundo sob a perspectiva de um trabalhador modal, de uma experiência pessoal da vida dos trabalhadores de sua amostragem, do que é comum neles, entre eles.

Lula não é um Vargas, membro da elite agrária vendo a necessidade de transformação do país, tendo uma concepção de tempo e história moldada nessa perspectiva nacionalista de devir. Se ele ocupa uma dimensão simbólica semelhante, o caminho que ele busca é bem outro. Lula não é um Juscelino, sublime criatura política alinhada com os tempos e as práticas de sua época. Lula não é um personagem de ficção em constante teatralidade como Jair, a quem ele derrotou. Lula não é um ego de elite (em muito mais de um sentido que você possa extrair dessa frase) como é Fernando Henrique, outro que também o antecedeu.

A primeira constância do mundo se você é um trabalhador no Brasil nestas seis décadas que incluem a ditadura militar e a Nova República, período em que Lula foi adulto, é que a crise sempre virá. Qual crise? Não importa. As crises em si não se repetem, mas a crise, sim. Não há um período de mais de meia década em que algum tipo de problema econômico não apareça minando a qualidade de vida do trabalhador, fazendo-o retroceder de um ponto onde ele teve acesso finalmente a coisas legais para uma situação de vida entre o meh e o precário. Sabe Os Aspectos Políticos do Pleno Emprego, do Kalecki? Você viveu isso nessas décadas.

O que é o momento de bonança do trabalhador? Isso não se mede pela variação de nível de renda, pelo nível de desemprego. Isso se mede pelo extraordinário. Mais a viagem à Disney e a picanha do que o acesso cotidiano a proteína na forma de frango barato. O momento “Plano Cruzado”, onde se chega a possibilidades de consumo suntuário vistas como marcas sociais das classes acima, é visto como esse momento furtivo onde a economia está bem. É uma experiência no momento, e não algo que se traduza numa tendência de longo prazo, de transformação concreta. Isso pode acontecer ou não (e no Milagre nos anos setenta estava acontecendo, por exemplo), mas transformação econômica, o desenvolvimento no sentido mais tradicional do termo, não necessariamente precisa estar acontecendo nesse momento feliz.

Sacrificar esse momento feliz, ou sua possibilidade, em função de perspectivas futuras? Bem, isso é oferecer a crise que fatalmente virá de forma antecipada. Essa conversa de desenvolvimento, da Economia no Tempo, no fundo mascararia formas de achatamento das possibilidades de fruir do trabalhador, desse trabalhador modal (e não da abstração trabalhadores).

Pegue-se o par juros-câmbio. Há um desespero nos economistas progressistas com o excesso que é o juro brasileiro. Certamente esse patamar de juros mina o investimento das empresas, reduz a possibilidade de criação de mais e melhores postos de trabalho. O investimento das famílias (leia-se, habitação) é afetado (pelo menos do ponto de vista do mercado formal. O quanto esse juro afetaria as construções irregulares que constituem, na prática, muito da habitação popular?). Certamente há um impacto no consumo, nas vendas parceladas. Mas não é nesse desaquecimento da economia discursado no juro alto que está a graça dele. O juro alto atrai “investimento” externo, que derruba o dólar, que torna os bens exportáveis (como a picanha) mais baratos e acessíveis no mercado interno, que permite uma importação de bens e serviços (Disney e Shein, por exemplo) bem mais em conta. O juro alto contém a inflação não pelo nível da atividade econômica, mas também pelos preços em si. Claro, se você é um potencial exportador, especialmente um exportador de algo que não seja uma commodity dessas da qual a natureza nos deu grande vantagem competitiva, esse câmbio é muito ruim.

Qual seja: se a inflação estiver sob controle e as possibilidades de qualidade de vida do trabalhador modal (aquele da grande maioria que nem perdeu nem ganhou emprego) abertas, Galípolo e seus juros estarão de boa para o presidente Lula. Se da perspectiva investimentos estruturais, de desenvolvimento econômico, de qualquer relação continuada com o Tempo, essa não seja propriamente uma estratégia adequada, ela em si não é pior do que a maximização das condições de satisfação do Mercado com a política de desmonte do Estado que passamos dos oitenta para cá. Privatizações e ajustes fiscais nada contribuem para a qualidade de vida do trabalhador, mas deram à Faria Lima e ao Leblon ao menos o veto sobre as possibilidades de política econômica. E o caminho onde estamos hoje é o tolerável para essas elites, o lugar de onde elas não partirão abertamente para derrubar o governo.

Além desse Lula há o “Janjo”. Mas esse aspecto de adaptação do Lula ao que foi a construção da pauta de esquerda que, no meu entendimento, teve a finalidade de sufocar parte do risco de insurreição populista decorrente da Grande Recessão, não é algo que dá para se discutir no Brasil do momento.

Como também não dá para se discutir os excessos do Judiciário, os sinais de tráfico de drogas que aparecem em parentesco de políticos (não só mineiros) desde a década passada, o phishing desenfreado que o Estado permitiu que fosse afligido às pessoas com consignados e jogo. Tudo isso é problema sério, problema onde as pessoas não querem encarar as contradições envolvidas em seus discursos de adesão política. Como a mudança climática, esses problemas serão cada vez maiores e mais visíveis com o passar do tempo. Como na mudança climática, mitigação e adaptação virão, ao menos no curto prazo, sem maiores transformações.

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