
“Aí dentro tem um colchão véio num é minha véia
Desmancha e faiz umas carça p’ra mim e ai deu saudade”
(tradicional)
Muito tempo atrás, o futuro era algo presente. O Space Shuttle (ou Apollo, dependendo da edição) na capa das edições em inglês do Mission Economy da Mazzucato era a materialização clara dessa vanguarda tecnológica, o ponto de partida da conquista do “Espaço, a fronteira final”. No final dos 70, quando ainda tinha por projeto de vida estudar física nuclear, passeei pelo MAM numa exposição sobre a usina que estava sendo construída. Meu padrinho, o raro português que veio para o Brasil ser mecânico e que se manteve como operário industrial trabalhando em fábricas a vida toda (tirando uma época ali nos 70/80 em que ele rebaixava FIATs 147 em sua garagem em São Gonçalo aos sábados e domingos; e um par de anos no início deste século quando ele “gerenciou” uma fábrica privatizada em Angola), vendo uma das peças usinadas, comentou: “nem em cinquenta anos dá pra se fazer uma peça dessas no Brasil” (Lá se vai quase meio século, amiga leitora, mas confie que foi mais ou menos isso que ele falou). Três décadas depois, meu tio António começou a frequentar o Futuro. A cada viagem que ele fazia a Xangai, trazia um novo maravilhamento com o crescimento da China, com a escala monumental em que a cidade crescia e a tecnologia se apresentava. Como elite operária (na época ele era enviado pelo estaleiro para acompanhar a manutenção/conserto de navios em lugares como China, Turquia, Texas…), pessoa que tinha feito literalmente tudo na construção de um navio, ele percebia o quão deficiente ainda eram aqueles operários chineses. Onde se precisava de uma pessoa em Niterói, ali havia três. E o resultado acabava sendo o mesmo.
E assim era duas décadas atrás. Machine, Platform, Crowd, o interessante livro do Brynjolfsson (e McAee) de 2017, abre com uma discussão sobre a transição da fábrica centrada numa grande máquina a vapor produzindo energia/movimento para as demais máquinas (como a máquina que engole Chaplin em Tempos Modernos), para o layout de fábrica com ponte rolante e máquinas com motor elétrico individual. O livro se pergunta: qual o layout da próxima fábrica? Em 2017 isso não era claro. Em 2025, as dark factories chinesas são o equivalente da fábrica da Ford que fazia os Modelo T em Detroit no início do século XX.
Praticamente não há referências à China, ao modelo chinês, no Mission. O que faz sentido em se tratando sobre a quem se dirige o livro: a ala esquerda da Professional Managerial Class do Ocidente, que atua no/para/com o setor público. Não que não haja tentativas de se fazer uma ponte entre o modelo chinês e as políticas orientadas à missão, mas não é algo tão simples assim.
Uma observação interessante a se fazer sobre a palestra do André, da qual tratei no artigo anterior, é que finalmente ele começa a discutir uma periodização mais longa da economia brasileira. A demarcação, embora bem nítida em termos de taxas e crescimento, não é aquela que eu enxergo. Tal como vejo, há um ciclo que começa após a Segunda Guerra e vai até o fim dos 80. Esse ciclo tem um apogeu (nos 70, Era Reis Velloso) e um colapso gradual nos oitenta, a década entre a transição do paradigma social-democrata que se sucede à Segunda Guerra para o paradigma neoliberal cujo colapso vivenciamos hoje. O período que começa em 90 teve seu apogeu nos anos de Luciano Coutinho, e seu colapso na balance sheet recession que estaria terminando agora.
Como você pode perceber, a demarcação que proponho põe nossos picos de apogeu de desenvolvimento em momentos em que a crise mundial está em pleno curso. Nos setenta, com o colapso do sistema de Bretton Woods, com a crise do petróleo, nós ainda assim avançamos estruturalmente o processo de industrialização no período Geisel. Na crise de 2008, Mantega e Luciano promoveram uma expansão do crédito público que permitiu uma pequena lombada na curva (em 13 minutos da apresentação do André) em meio a uma recessão mundial acontecendo. Se não houve um II PND, há muito que se entender a beleza plural de coisas como o Minha Casa Minha Vida e o PSI (mas talvez seja cedo ainda para isso).
Tá, mas o que que esses dois fios que puxei têm relação entre si?
Vivemos o mais interessante dos tempos, o tempo findo o qual o intelecto geral terá definitivamente nos libertado do trabalho tal como conhecemos. A dark factory já é isso, a fábrica automatizada ao final de A nós, a liberdade. Mas as mudanças não param por aí. O futuro é definitivamente elétrico e solar: hoje a combinação de solar com estocagem em baterias é o progresso na produção de energia. Mesmo os Estados Unidos se rendem a isso. Também na China, a CATL anunciou baterias de sódio que são a pá de cal em muita da discussão geopolítica que acontece hoje. Elas afundam de vez não só com qualquer possibilidade de sobrevivência econômica do motor de combustão interna (matando com a centralidade da questão estratégica do petróleo) como com o sonho de que o lítio viesse a se tornar o grande recurso mineral desse futuro elétrico. Nesse pacote, o hidrogênio também naufraga de vez. Se alguma vez houve viabilidade para o hidrogênio, sendo realista, sempre foi o hidrogênio azul produzido a partir de gás natural (russo, no caso dos alemães). Definitivamente isso acabou em 2022.
Do ponto de vista financeiro há uma realidade que começa a se impor, o mesmo tipo de realidade que se impôs ao longo da Primeira Guerra Mundial. Se há uma centralidade de um país (o que não vale para o conjunto dos países da OPEP que acabou adotando o dólar) na produção de bens que o conjunto de outros países utiliza, a moeda desse país vai virar a moeda de invoice do comércio internacional. Por quê? Porque simplifica a vida das empresas que estão produzindo esses bens. Esse foi o caso da ascensão do dólar: Grande Guerra acontecendo, de comida a motores de avião sendo necessários para a Entente continuar travando a guerra, os produtores americanos querendo receber na moeda em que pagavam seus fornecedores e trabalhadores. O mesmo começa a acontecer com a China, e os russos estão satisfeitos de receber em yuan por seus produtos. Portanto, a ilusão de que uma moeda dos BRICS venha a acontecer é uma brocha da multilateralidade na qual nossa diplomacia deixou Lula pendurado.
Nesse quadro, a breve intervenção da diretora Tereza Campello no evento de “uma coisa, outra coisa e democracia”, pouco depois da fala do príncipe Alex, bem como a fala de Lula nas Nações Unidas, mostram qual retardado é o posicionamento brasileiro hoje na questão do desenvolvimento. É como se nada tivesse acontecido do acordo de Paris para cá, talvez até de antes.
Biocombustível, por exemplo. Ele é um dos pés da nossa matriz “limpa” de energia. O Brasil entrou em biocombustível no fim dos setenta em função de uma crise causada pela mudança de preços do petróleo. Caminho próprio no qual trilhamos sozinhos até isso virar truque do governo Obama para conquistar os produtores de milho e ajudar a manter o preço do petróleo dentro de limites que não comprometessem a economia mundial (outra perna disso foi a explosão do shale com as taxas de juro extremamente baixas produzidas por Bernanke, colega de sala do Lara. Mas essa é uma história que trato noutra ocasião). Mas nunca foi uma solução de fato para uma escala global. Tecnologicamente é uma solução regressiva: o carro com motor a explosão de ciclo otto (que usa gasolina ou álcool) é mais ineficiente que um carro a diesel, e ambos mais caros de se produzir que um carro elétrico. Nunca foi propriamente uma boa solução, mas, como nos ensinou Ricardo com suas vantagens comparativas, era uma ótima solução para o Brasil do final do século XX. E tornou São Paulo respirável.
O mesmo pode ser dito de nosso parque hidrelétrico. Ele é fruto de décadas de investimento público em algo que é específico nosso: a geografia. Há potencial para mais investimento? Deve haver. Mas isso é literalmente mais do mesmo de um processo complicado. A última vez que vi presencialmente o presidente Lula foi na República do Chile. Ele estava num caminhão do MAB (Movimento de Atingidos por Barragens), e é simpático a eles. Talvez isso seja consistente com a ideia de que “fomentar o desenvolvimento sustentável é o objetivo do Fundo Florestas Tropicais para Sempre, que o Brasil pretende lançar para remunerar os países que mantêm suas florestas em pé.”, como discursou Lula na ONU. Ou a chocante defesa de captura de carbono feita por Campello, como se as florestas em pé do Brasil ou mesmo o eventual reflorestamento de áreas degradadas fosse uma solução significativa para o problema já existente.
Nessa hora, exatamente, jogamos energia fora. Há pânico que o excesso de energia renovável venha a gerar um colapso do sistema.
O Brasil está amarrado a uma série de compromissos com o passado. Compromisso com um setor financeiro que assumiu o controle da economia do país, que exige um ganho em qualquer inciativa que se faça. A entrega da Eletrobrás no governo Jair foi uma certa culminação disso. Compromisso como agronegócio, de forma que o tem que manter isso aí do álcool seja defendido, não porque exista uma pressão de autonomia neste momento ou no futuro (e existe uma bela, mas hoje tecnologicamente obsoleta, defesa do setor de cana como solução completa para nossas questões energéticas. Fazia sentido no meio da década passada). As vendas de híbridos estão caindo na China, o que faz muito sentido, mas esse é o caminho de tubos de imagem que nós escolhemos. Compromisso com um modelo “privado” de geração de energia que nos foi dado pela ministra que ocupou o cargo no início do governo Lula, modelo que garante lucros e joga energia de custo marginal zero fora.
Missão dada é missão comprida… Acho que vamos chegar mais uma vez com mais de uma década de atraso.
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