“Descobri que as coisas mudam e que tudo é pequeno”
(Brant e Bituca)
VÍNCULO 1598 – Acordei de um sonho estranho. Cinco e pouco, esta quinta. A vaga lembrança, sem mais detalhes: algo como o pessoal do agro fazendo passeios à Lua (na verdade aqueles voos que Bezos e Branson andaram propondo) e lançando como despesa de pesquisa meteorológica. Acho que minha poesia do futuro está meio contaminada pelos Haddads do presente, que não deixa de ter alguma relação com o que pretendia escrever.
As eleições europeias são o assunto que me traz hoje aqui. A ascensão que ameaçava ameaçadora da extrema-direita, que não aconteceu ou não, dependendo do que você considere as coisas. Por exemplo, do que você considere como extrema-direita.
Acho que começar por um exemplo de outro lado fica mais fácil de entender. Até porque não pretendo desenhar.
Pegue o símbolo da Antifa, aquela bandeirinha preta junto com uma bandeirinha vermelha. Representa as esquerdas unidas contra o fascismo. A preta são os anarquistas. A vermelha os comunistas. Ambos extrema-esquerda. Ambos abolição do capitalismo. Ambos… bem, para por aí.
Os anarquistas acreditam numa transição direta para um estado final no qual o Estado não mais existe. Os comunistas, na sua experiência prática da necessidade de um Estado forte. No primeiro caso, V de Vingança, a literal explosão do aparelho de Estado. No segundo, Lenin e Trotsky, Mao, Castro e Guevara.
A direita, especialmente a extrema direita, põe todos no mesmo pacote. Hoje, eles tacam até o pessoal das ONGs da Open Society (cujo nome vem da obra anticomunista de Popper), das fundações americanas e europeias de base liberal e religiosa nesse pacote. Gente que vem mais dos pós-modernos, de Foucault e Butler, do que de qualquer discussão sobre relações de propriedade e produção. Gente que simplesmente é movida pela caridade. Extrema esquerda para essa direita é o outro lado – “feio aquilo que não é espelho”.
Você consegue diferenciar um anarquista de um leninista? Te causa desconforto, amiga, como causou à minha mãe quando o viu nos noventa, como causou a muita gente de esquerda na época, ver o fabuloso Terra e Liberdade do Ken Loach? Você consegue conviver com a contradição em si mesma, no mundo ao redor, no que sobra de notícia processada para você consumir?
Acho que a maioria das pessoas que irá ler este artigo provavelmente consegue ver esta nuance nas posições da extrema-esquerda – melhor do que na extrema-direita. E num momento em que há um esforço gigantesco para nos colocar em pânico contra a extrema-direita, o que quer que ela seja, olhar essas nuances é importante. O tempo em que os pedaços dos Boeing caem não é o tempo dos aviões da Pan Am, o futuro que não aconteceu de 2001.
Qual seja: admito até fazer uma ponte com o fascismo, que para mim é mais uma forma histórica do que uma prática política, em movimentos que contêm um impulso imperialista, de expansão territorial, seja esta externa ou interna, como nos casos de Modi (Índia) e da coalizão de Netanyahu (Israel), um pouco na malandragem de Erdogan (Turquia) sobre o território sírio. Mas uma direita isolacionista vai na contramão disso. O libertário ex-deputado Ron Paul e seu filho, o senador Rand Paul, são bons exemplos americanos de direitistas bastante extremos, mas totalmente contra as ações externas americanas deste último quarto de século. Xenofobia pode estar presente, mas ela não é uma cachaça a abolir seu senso moral para melhor praticar imperialismo.
Nesse sentido, para mim fica difícil ver no AfD, que propõe a saída da Alemanha de uma União Europeia que é dominada pela Alemanha, um impulso imperialista desse tipo. Há uma inconteste xenofobia. Mas há desejo de expansão territorial, de dominação sobre os outros? E mesmo no eleitorado que vota nesses grupos, a xenofobia é a pauta que leva ao voto, ou ela é um elemento algo desagradável que você releva porque tem outras motivações no pacote de pautas que leva ao seu voto (meu melhor exemplo disso foi um amigo centrista ateu convicto que votou no Crivella, pois não votava no PSOL de jeito nenhum)?
Mas indo para as eleições europeias: há um muito bom artigo do Adam Tooze em seu Substack no qual basicamente ele descreve a eleição mais como uma derrota da pauta verde do que propriamente uma ascensão maior da extrema-direita. A grande centro-direita, a coalizão de partidos comandada pelos democrata-cristãos alemães, cresceu um pouquinho: de 25,0% de 705 cadeira para 25,6% de 720 cadeiras. O bloco social-democrata manteve 139 parlamentares. O (pequeno) bloco de esquerda ganhou um, sem contar as do recém-criado partido de Sarah Wagenknecht na Alemanha. Onde o estrago ocorreu foi no bloco dos liberais, onde está o partido de Macron; e nos Verdes, um bloco que também inclui alguns partidos regionais de esquerda.
O problema, no entanto, é que esse realinhamento aconteceu nos dois maiores países da União Europeia. O partido da Le Pen, anátema da política francesa, tornou-se o maior partido individual do parlamento europeu. Macron reagiu, prontamente, dissolvendo a Assembleia Nacional. Várias intepretações de porque ele fez isso: porque sua maioria era pequena, insustentável; porque ele tentaria produzir uma maioria a partir desse medo da extrema-direita, num voto plebiscitário; porque ele acharia que se a extrema-direita viesse a ocupar o governo agora o desgaste seria tal que fatalmente eles perderiam a eleição presidencial de 2027. Não é clara a razão, mas há um enorme risco envolvido: tal como foi a eleição europeia, no sistema de voto distrital em dois turnos que há na França, é bem capaz de que o centro praticamente desapareça da Assembleia Nacional. Com uma distribuição de preferências em “U” no eleitorado, como acontece no Brasil entre o PT e a direita “bolsonarista”, o tal do Centro não há mais. Particularmente, acho que o caos que irá resultar pode ser uma bela lição para os centristas que defendem os sistemas de voto distrital em nossa política.
A implosão alemã aponta para uma crise ano que vem, até porque eu duvido que a atual coalizão venha a propor convocação de novas eleições. Os três partidos da coalizão – SPD, Verdes e FDP – tiveram um péssimo desempenho. Os democrata-cristãos mantiveram uma clara liderança, mas sem o tamanho que historicamente teriam num momento de estar na oposição a um governo impopular.
Mas tanto na Alemanha quanto na França, enquanto se enxerga o problema de uma imigração interpretada como descontrolada num momento em que os governos praticam medidas de austeridade contra a população em geral, há também as medidas da pauta verde, de adaptação climática. E é a forma escolhida pela Europa, de imposição de taxas e restrições ao uso de combustíveis e à agricultura, que está levando a essa reação.
Mais do que um súbito acesso de reacionarismo xenófobo na Europa, há uma reação descoordenada do “saco de batatas” à tentativa de se adaptar à crise climática com mecanismos do Mercado, pelo Mercado, para o Mercado. É preciso se entender que essa agenda fracassou não só do ponto de vista eleitoral, mas do ponto de vista econômico. E na eleição de novembro nos EUA caminha-se para o mesmo resultado.
(E quanto ao impacto da guerra da Ucrânia, ela não é tão descolada assim dessa falência da ordem neoliberal. Mas isso é outra história)
Em algum momento o governo Lula precisa acordar e entender o fracasso de determinadas agendas, agendas que não são a única solução para os problemas aos quais elas se propõem a resolver. Como a de clima, por exemplo. Mas estamos por demais atrelados às soluções e mecanismos de um Ocidente que colapsa, ao invés de abraçar a inventividade que se anuncia na ordem multipolar.
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