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As Dores de Pedro, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

Curiosamente, una pastilla puede borrar el cosmos y erigir el caos.” (Borges)

Minha empatia pela dor desse imigrante latino americano, que, apesar de lhe faltarem só três anos para os noventa, ainda exerce o fardo de seu incessante trabalho. A este bom senhor, que restou solitário em sua posição após a morte da Glória da Oliveira, saúdo pelo aniversário. Difícil, no entanto, pensar num momento mais doloroso para o Bispo de Roma, pensar num momento de tamanha desconsideração como o que vivemos.

O apóstata Milei tomou posse na Argentina, fazendo sua prometida redução de ministérios, sua prometida política de choque. E junto disso, ameaças. Junto com essa política de choque, o Choque da Polícia foi anunciado. Entenda-se que Milei não é uma mera versão concentrada de neoliberalismo, mas AnCap (anarco-capitalismo), um remédio de tarja preta que nunca foi adotado fora dos discursos de paciente psiquiátricos da política. A terra de Bergoglio, a outra cidade da qual foi bispo, será o paciente desse experimento, como de certa forma o vizinho ao lado o foi de remédios neoliberais.

Claro, isso tem seu preço. A China, maior dos BRICS, restaurada depois de um par de séculos à sua posição de milenar de maior potência manufatureira deste planeta, cobra de Milei uma clareza em seus compromissos. Um swap cambial necessário a estabilizar as contas argentinas está suspenso. Talvez porque o novo governo argentino não tenha clareza quanto a algo que mesmo os americanos reconhecem desde Nixon, que Taiwan é uma parte da China. Talvez para mostrar ao petulante candidato que agora, no poder, o buraco é mais embaixo. Ou, sendo mais preciso quanto às contas da Argentina, mais profundo.

Assim como a Ucrânia, a Argentina é um país que transitou de breadbasket para basket case. Me lembro de quando eu era criança ter visto um atlas onde a Argentina aparecia como um país desenvolvido. Desenvolvido, de fato, ela nunca foi. Mas a Argentina foi um país rico (veja essa tweetstorm a respeito que está muito boa. Se puder ler algo mais longo e detalhado, este artigo também está bem legal.). Na virada do século XX o agronegócio argentino foi uma potência. Isso durou décadas, permitiu a extraordinária cidade de Buenos Aires e um nível extravagante de vida para suas elites, mas passadas algumas décadas isso desmoronou. A história da Argentina é um alerta sobre a perspectiva de se construir um desenvolvimento a partir de uma vantagem comparativa, de um Alfa intrínseco a um território ao invés do Beta de investimento e trabalho. Politicamente, o fracasso da Argentina e, mais especificamente, do peronismo em transformar a economia, são outro alerta quanto a converter esse excedente, que acabava virando consumo das elites, em consumo dos trabalhadores. Ou cair na tentação da operação cruzada, de usar o excedente dessa vantagem comparativa para “industrializar” sem se ter muito claro para onde se vai com isso.

Sem querer bancar outro Paulo, o Guedes, com suas profecias cretinas sobre o governo Lula, não ache que é por partidarismo que acredito que a Argentina mergulhará numa crise sem precedentes. Um dos problemas de tudo que tem a expressão “anarco” incluída é a desconsideração de que uma ordem complexa não surge automaticamente do nada. Sequer rapidamente. Num certo sentido, as medidas de Milei não são nada conservadoras. Como aprendi décadas atrás com um simpático professor de política pioneiro na questão ambiental, conservadorismo é acordar com a fé de que seu chinelo está ao lado da cama. É ter confiança nos outros, como afirma Fukuyama. Meados de 24 a Argentina estará imersa no caos do desaparecimento da ordem, da remoção do Leviatã pela esperança da autogovernança. Nesse clima não há como ter investimentos significativos. Não é uma questão puramente de economia: é uma questão de tempo para ordens se estabelecerem, de entropia, de violências que vão tomando o espaço da ausência de um Estado. Acho que a Argentina desconhece essa simpática criatura da estabilidade e da governabilidade que é um Centrão, essa fita-Bananão que agora adere a Lula, com seus vetos lembrando que devagar com o andor, “tem que manter isso aí”.

Mas não só de sua terra, mas de seu rebanho as lágrimas de Francisco. O assassinato de mãe e filha abrigadas numa igreja, uma senhora idosa e sua filha que correu par acudi-la, é só mais um exemplo do que tem sido a ação de Israel em Gaza. Terrorismo, foi o termo usado pelo Papa. Terrorismo que acontece sob as bençãos de um senil fiel da Igreja Católica, Joe Biden. Biden teria como impedir a atrocidade que acontece. Sua decisão de não fazê-lo, se é que ele toma alguma decisão ainda, abre a caixa de Pandora, e dela saem os ventos bastante desfavoráveis à hegemonia fundada nas “moedas” de 100 mil toneladas de aço, como descreve meu querido Helinho.

Os Houthis que governam o Iêmen decidiram entrar no jogo de sanções econômicas. Afinal, se os americanos podem abordar navios, impedir relações de empresas que não são americanas de transacionar com Irã, Venezuela, Cuba, Coréia do Norte, Síria, Rússia e muito mais, e se Israel pode estabelecer um bloqueio naval a Gaza, os Houthis terem estabelecido um bloqueio naval à Israel é, na falta de outro termo, totalmente condizente a uma “ordem baseada em regras”. Assim como os EUA na Síria, só para dar um entre incontáveis exemplos, eles não têm uma resolução da ONU para justificar sua ação. E daí?

Problema: as moedas de 100 mil toneladas foram feitas para trazer terror e destruição em larga escala. Os navios de sua entourage foram concebidos para protegê-los, e, eventualmente complementar sua capacidade de destruição. Eles não foram feitos para o trabalho paciente e meticuloso de proteger navios cargueiros esparsos, para estabelecer esse tipo de controle numa grande área de passagem sob a ameaça de armas de baixíssimo valor. Talvez isso funcionasse com ameaças mais parrudas, como os antigos mísseis soviéticos atacando o comboio de tropas americanas indo salvar a Europa num romance de Tom Clancy. Mas a atual situação é como usar de gatos para combater uma infestação de gafanhotos. Usar de um míssil de dois milhões de dólares para abater um drone ou um míssil balístico que custou entre cem e mil vezes menos é uma forma totalmente inviável de se travar uma guerra, a própria definição de vitória de Pirro. Não que não seja possível aos EUA conceber uma forma de enfrentar a ameaça – só não dá tempo. E os planos vigentes tal como orçados não contemplam essa revolução que acontece. Também não há quem possa construir, e quem pode construir alguma coisa tem incerteza sobre isso. Curiosamente, os recém-BRICS Emirados e Arábia Saudita não se voluntariaram a participar do policiamento das ações dos Houthis.

Em bom português, os Houthis estão trazendo uma disrupção de Christensen para o campo da guerra (Disruptive Innovation describes a process by which a product or service initially takes root in simple applications at the bottom of a market—typically by being less expensive and more accessible—and then relentlessly moves upmarket, eventually displacing established competitors.). Pensem nisso toda vez que vocês virem alguém propondo um submarino nuclear para proteger o Pré-Sal.

O outro problema é o desmascaramento que a decisão de não conter a brutal violência praticada por Israel está fazendo sobre a reputação americana no mundo. Semana passada saiu um formidável artigo de John Mearsheimer sobre o despropósito do que se passa em Gaza. Um artigo feito com a consciência de que a posteridade irá julgar de forma severa esses crimes de guerra, aqueles que os legitimaram, aqueles que silenciaram quando podiam ter feito alguma coisa. Notícias de crimes de guerra, como esta fresquinha saída do Alto Comissariado de Direito Humanos da ONU, por exemplo. Não forçar a suspensão das atrocidades, não permitir que elas sejam processadas, tem um custo sobre a credibilidade dos organismos internacionais. Da caixa de Pandora sai também a destruição moral do mundo “democrático” no Sul Global.

Num momento em que todos dependiam dos EUA para funcionarde seu sistema financeiro, de suas empresas multinacionais, de sua demanda –, os EUA podiam impor o que queriam. Hoje, no entanto, a demanda por materiais, as empresas produtivas, o drive tecnológico, tudo isso é China. A China colocou em operação mais robôs industriais em 2022 do que todo o restante do mundo somado. Mais do que o dobro de EUA e Europa somados. A economia chinesa já ultrapassou a americana, e não foi agora. Isso saiu da Caixa e não tem volta. A fraude chamada Bidenomics, o eventual retorno de Trump (para a alegria ilusória de Milei) se alguma violência (ou lawfare) não for detonada, nada disso fará os EUA saírem de seu atoleiro econômico, político e moral.

A Francisco em seu reinado, desejo, nesse momento de dores, longevidade, serenidade, saúde. Faço votos que como ele outros Franciscos – o que aniversaria em breve, o que canta e escreve – venham a celebrar seus centenários com a lucidez de Oscar e de Canô.

Feliz Natal!

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