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As Sociedades Abertas da América Latina, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

“Don’t think that we don’t know
Don’t think that we’re not trying
Don’t think we move too slow
It’s no use after crying”
(Men at Work)

A minha primeira sensação quando vi que Al Gore estaria no Banco foi de uma gentil nostalgia de um tempo mais inocente. Como a visita de uma banda desaparecida que marcou um momento distante. Man at Work, por exemplo. Na quarta eu fiquei esperando aparecer o link para o evento… e não teve link. Não está disponível no YouTube, infelizmente. Portanto, o que falo a respeito é mera dedução a partir da comunicação do próprio Banco, a comunicação do governo, e do que a Globo escolheu me destacar. Assim como no caso do cão dos Baskervilles, tentarei escutar os latidos que não ocorreram.

Que a crise climática é a maior emergência de todos os tempos, mas, ao mesmo tempo, o setor privado e os arranjos financeiros vigentes resolvem isso, sempre foi este o mantra de Al Gore. Uma visão calma, positiva, de como se pode enfrentar algo muito grave. Sua influência norteou o acordo de Kioto.

Mas Kioto não foi construído na urgência de um meteoro se aproximando, com medidas a serem acordadas pelos Estados-nacionais dentro de uma visão global. Kioto foi construído nessa fé de que as instituições de mercado resolveriam esse problema. E que sem elas os EUA não estariam dentro do acordo. O problema dessa história é que os EUA nunca estiveram de fato dentro do acordo. Kioto foi a nova versão da Liga das Nações, na qual os EUA forçaram uma série de princípios para depois ficar de fora. Por quê? Porque lá um acordo precisa ser ratificado pelo Senado, e o Senado lá não vai passar medidas que possam impactar negativamente seus eleitores e seu controle legislativo.

Qual o uivo que ouvi no silêncio? As ações da China enquanto solução para a questão climática. Em nenhum dos links há menção a isso. E certamente haveria um certo chilique no Valor se o presidente Mercadante tivesse feito elogios ao modelo chinês. Talvez um dia “Mudança Climática, Desenvolvimento Sustentável e Democracia” se torne disponível e eu possa ver mais o que de concreto se falou, e os presentes oferecidos a este hoje irrelevante visitante.

Irrelevante, sim. Al Gore é uma facção que sequer chegou a acontecer nos Democratas. Os Clinton, e sua relação com os neocons (que se tornaram mais fortes ainda sob Bush), permaneceram. Obama, e sua relação com uma série de pautas reinterpretadas dos democratas, vieram a se somar. E Al Gore, do ponto de vista da política cotidiana, deixou de ser. Uma pena? Sim. Mas política é o que é.

WTF! foi o que me veio quando eu vi sobre o evento seguinte que haveria. “Globalização, Desenvolvimento e Democracia”, com participação do “(não tão) novinho da Havan” do regime Biden. O caçador de pokémons, o príncipe escolhido, o marido do braço direito de Hillary (e ex-esposa de Carlos Danger). Pensei que ele aparecesse online, mas lá estava ele, desconfortável, no palco do auditório do BNDES. Este sim um astro do presente. Este sim uma presença política relevante. Alex veio juntar mais umas cartinhas na sua coleção de fotos com políticos progressistas, e participar de discussões com o povo que prepara o evento que haverá no Pará. Parte do qual originado de suas fundações, do suporte dessas fundações às ONGs que fazem nossa “sociedade civil”. Já falei disso discutindo com Pepe Escobar, já toquei nisso quando discuti o terceiro setor.

A visita do príncipe Alex e sua calorosa recepção pelo governo sinalizam que, no atual cenário político internacional, o governo Lula está apostando naquele povo na foto com ele ao lado de Zelensky, na reunião do G7, no Canadá. Sabe Canadá, aquele lugar colado com o Alasca, onde Trump e Putin se encontraram, Lavrov chegando com um suéter onde se lia URSS. Com aquela turma do outro lado da mesa, dos países que um dia foram as potências imperialistas travando guerras mundiais, que desesperadamente querem que os EUA façam uma intervenção em seu favor na guerra onde eles e o regime Biden se meteram com a Rússia. O Ocidente liberal e sua rules based order.

Até o ano passado poderia se enxergar o mundo como tendo dois lados: o Ocidente pendurado na unipolaridade americana; e o cerne eurasiano dos BRICS, China e Rússia, numa aproximação cada vez maior. No primeiro lado, havia uma insurreição em curso da “extrema-direita” ameaçando o consenso neoliberal dessas sociedades abertas, a forma civilizada de se fazer as coisas. Como, por exemplo, os acordos de clima onde as soluções de mercado e de finanças, operadas pelo setor privado com suporte do Estado, iriam resolver o problema no futuro, sendo contestados pelo negacionismo. Zizek descreveu bem isso década e meia atrás (“In today’s post-political democracy, the traditional bipolarity between a Social-Democratic Center-Left and Conservative Center-Right is gradually being replaced by a new bipolarity between politics and post-politics: the technocratic-liberal multiculturalist-tolerant party of post-political administration and its Rightist-populist counterpart of passionate political struggle”, na introdução de “Vivendo no Fim dos Tempos”).

Agora tem três lados. Trump é o presidente dos EUA, e, desta vez, de fato, governa. É um governo que aprendeu em quem pode confiar, que o Partido Republicano tradicional é inimigo das causas MAGA, um governo podendo finalmente testar os limites de fato de suas ações internas e externas. Concorde você ou não com elas, este é o governo americano que temos, com seus poderes, deal with it (expressão que, para deixar bem claro, pode ser traduzida tanto quanto plata como quanto plomo). Se originalmente os democratas conceberam leis como a Magnitsky para operar contra o outro lado, originalmente contra os russos que baniram a operação das organizações de Soros em seu território, agora essas ferramentas se viram contra os aliados desses democratas que a conceberam (nós, no caso).

O outro lado, os Estados que abordam o mundo segundo sua própria organização interna e com uma perspectiva multipolar (não confundir “multipolar” com “multilateral”: o entendimento multipolar assume a desigualdade intrínseca entre países, ao mesmo tempo afirmando a autonomia desses, ao contrário do teatro da multilateralidade tão ao gosto de nossa diplomacia em sua aposta nas instituições da Nova Ordem Mundial, criticada lá atrás numa canção de Caetano). China, Rússia, Venezuela… muito da Ásia já podia também ser encaixado aí. Qual a tradução disso dentro de nosso universo político nacional? Não sei se há. Não sei se faz sentido haver como proposta de institucionalidade interna. Creio que a própria natureza da multipolaridade meio que vai contra isso, contra uma fórmula de institucionalidade a ser replicada. E uma das questões é essa: não se conte com a China ou com a Rússia para resolver nossas questões políticas internas.

Escolhemos plomo. Acolher dessa forma alguém que é visto como inimigo interno americano (depois de um atentado, lawfare a dar com o pau, as acusações fakes do Russiagate, tentativas de impeachment… digamos que o termo oposição é meio insuficiente para explicar esse conjunto de ações contra Trump) é reiterar a aposta no conflito com o governo Trump. E não fazendo-o sob o prisma da multipolaridade. É fazê-lo se alinhando aos apóstolos de uma globalização que acabou. A OSF é banida na Rússia e os chineses à veem como um inimigo. Porque, de fato, é. O termo Sociedade Aberta, tal como entendemos, vem de Popper, um dos fundadores da Sociedade Mont Pèlerin, o rio Solimões do neoliberalismo. As OSF foram importantes na destruição dos regimes socialistas na Europa e o suéter do Lavrov meio que diz “eu sei o que vocês fizeram no verão passado”.

Tirando um insuportável uso da expressão “you know” (que eu traduziria como “né”), como se fosse um radioamador dizendo câmbio ao final de cada frase, sintoma de que Alex não foi treinado para eventos públicos deste tipo, o vídeo vale ser visto. Não sei se Alex é ou será brilhante como o pai, mas é uma pessoa bastante inteligente e capaz de refletir de forma complexa sobre as questões que se colocam. Há uma segunda parte, essa mais interessante ainda, que foi uma apresentação do Dani Rodrik. Mas essa discuto semana que vem.

E ser interessante, reitero, não resolve o erro político do qual esses eventos foram sintoma. Democracia e o prêt-à-porter da sociedade aberta não são a mesma coisa.

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