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Da Forma Errada – Escalando

Paulo Moreira Franco – Economista do BNDES

“I would describe it as restrained jubilation”
(Seinfeld, The Finale)

Vínculo 1285 – “Vc viu essa (acima)? Levantaram pra vc cortar rsrsrs”. Acima, no caso, era o texto do Lauro Jardim com um “vazamento”, mensagem anterior no celular na quinta após o carnaval. Todo mundo aqui viu, não vou me dar ao trabalho sequer de linkar. Quem terá vazado o que seria uma mensagem privada num grupo de whatsapp de duas dúzias de pessoas, uma das quais o presidente (as demais superintendentes), não tem, pelo visto, a menor importância. É um daqueles vazamentos à la depoimento de irmãos Batista, notável não só pelo que é dito, como pelo que está de fora. Seria muito fácil fazer piada sobre quão superlativamente esquisito é um homem recém-casado, que trabalha para Temer, Meirelles e Moreira, o qual, numa manhã de carnaval, fica falando que falta calor numa lista majoritariamente composta por outros homens mais jovens. Seria fácil detonar com o tipo de atitude senhor de engenho que é numa manhã de sábado de carnaval ficar confundindo compromisso (algo da ordem dos valores, objetivos difusos, permanente) com trabalho (algo que acontece sob limites burocráticos e hierárquicos, objetivos concretos e palpáveis) com subordinados que deveriam estar gozando de um merecido repouso. Poderia falar que é por conta deste formato contínuo e despropositado de comunicação que eu não tenho um smartphone, o que faz com que eu não tenha que me indispor com as pessoas por não incluí-las em whatsapp. Aliás, não tenho existência em redes sociais.

Há coisas mais importantes pra se discutir, coisas que não são o lado encenação da política, coisas que têm a ver com outra questão política que é o nosso cotidiano de trabalho. É nesse entendimento que vou abordar o texto da Tatiana. E o que faço aqui, perdoem-me, é uma interpretação muito particular sobre como o Banco se estrutura, como se compõe, outra dimensão de uma análise que fiz lá atrás quando Maria Sílvia ainda cá estava.

Uma metáfora: a Inglaterra das estórias medievais, de Robin Hood e Ivanhoé. Acho que todos aqui conhecem um pouco. Tem uma alta nobreza, composta de normandos, que falam francês. Tem uma baixa nobreza, que é anglo-saxã, que sofre com os eventuais desmandos dessa nobreza francesa, mas fiel ao rei normando. E, esquecidos, escanteados, há os bretões (à la William Wallace). Dos sete principais cargos que compõem o Banco, no que tange à ocupação das posições hierárquicas, certamente economistas e engenheiros preenchem o papel de normandos. Contadores, analistas de sistemas e administradores, o de saxões. Os técnicos administrativos, os bretões, esquecidos, sem voz, mas que vez por outra se levantam em revolta nas negociações trabalhistas. Os advogados algo meio à parte, falando um linguajar próprio… o latim do clero?

Não tenho os dados atuais. Houve um tempo que isso dava para se conseguir via Notes, mas crescentemente o Banco foi ficando “transparente”, e aí não se consegue mais informação como antes. Mas usando dados não tão distantes assim, da época em que Luciano Coutinho, um bando de economistas e um engenheiro da ativa governavam o Banco, tínhamos a seguinte ocupação das funções:

Acho que o quadro é bastante claro. Advogados, economistas e engenheiros representavam 51% do nível superior dos funcionários em atividade no Banco. No entanto, eles eram 83% dos superintendentes, 77% dos chefes de departamento e 72% dos assessores. Sem descer a detalhes quanto à questão da incorporação – os dados que eu tenho não me permitem avaliar isso –, é curioso que a proporção de “índios” (funcionários sem função) é basicamente a mesma entre as diferentes profissões, em torno de 3/5, salvo os advogados (onde metade era comissionada) e os analistas de sistemas (onde 70% não eram).

Essa desigualdade nos índios advém de dois aspectos da história/cultura da organização. Em meados dos 90, início dos 00, os salários iniciais do Banco não eram tão competitivos em relação ao que pagava o Judiciário e o Ministério Público. Muitos entraram no Banco e saíram em poucos anos. Já o quadro de analistas de sistemas é um grupo que costuma ter tanta consideração por parte de quem comanda o Banco que nos estertores do governo FHC foi criada uma área de TI com um superintendente não só de fora do Banco, como contratado como PJ. Lessa acabou com essa bagunça acabando com a área e devolvendo TI à Área de Administração. Neste momento em que há um esforço em direção a dois mil e trinta e sabe-se lá quando, nenhum superintendente é analista de sistemas.

O que nos traz à questão da Área de Contadoria. Sim, você está lendo certo. Contadoria. Se olharmos para a União, CGU (Controladoria), Planejamento (Orçamento) e Fazenda (principal nexo de uma contabilidade descentralizada) são ministérios distintos. Juntar essas três coisas num lugar só, como se fez aqui no Banco, acredito que deve violar uma série de prescrições. Por outro lado, se você é um cara que chega cá trazendo A Palavra, querendo ensinar o padre a rezar coisas de difícil implementação (e duvidosa validade) como TIR social na análise de projetos, você acaba ficando aliviado ao se livrar de processos burocráticos como o PDG. O mesmo pode se dizer da Área Financeira: muito mais bacana receber de volta a parte internacional, potenciais novos de aplicação e captação de dinheiro, se livrando desses temas áridos de tributação e atualização dos sistemas contábeis. A Área de Contadoria, assim como a de TI, assim como a centralização do jurídico, são formas de se tacar pra debaixo de um conveniente tapete o que não é core business, o que não é cerne, aquilo com que o conjunto dos executivos não quer se preocupar com. Bem, quanto ao jurídico, houve discordância…

Mas aí eu tiro meus chapéus de economista e engenheiro de produção e ponho outros óculos. Se para os engenheiros (que sonham com as coisas, constroem e contribuem para construir) e para os economistas (para os quais a questão do desenvolvimento é central na sua própria ciência) o desenvolvimento como tema/valor é algo palpável naquilo que é sua profissão, sua ideologia, seus valores, para um contador isso não está no centro do que constitui seu conhecimento, seu orgulho profissional. O que não quer dizer que enquanto funcionários do Banco, enquanto cidadãos brasileiros, eles não tenham uma concepção de desenvolvimento, não tenham o compromisso como um valor. Mas Celso Furtado e Hirschman não são matérias na faculdade, Ha-Joon Chang, Mariana Mazzucato e Dani Rodrik não são autores contemporâneos com os quais você tenha que dialogar, só pra dar alguns exemplos.

Portanto, a sensação de um trabalho bem feito passa não só pela concretização direta dos resultados da atuação do Banco, mas por ações que não são visíveis nisso, ações que acontecem no plano interno. Curiosamente, olhando por dentro a mesma base usada anteriormente, 73% do quadro de nível superior das áreas que realizavam operações diretas compunha-se dos três cargos “normandos”.

Em bom português, minha leitura do que acontece com o fim da Área de Contadoria, do que entendo como subtexto do artigo da Tati, é que há um sentimento de desvalorização, de desrespeito ao trabalho, às visões de excelência que o corpo de contadores do Banco comunga. Que o Banco deva olhar pra fora nas suas decisões, isso é inconteste. Não só olhar: deveríamos ouvir. Mas o Banco, em seus processos internos, deveria ouvir o amplo conjunto de competências e conhecimentos contidos no seu vasto corpo técnico – e não o submeter ao “mansplaining” dos normandos.

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