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Desgaste Militar, por Paulo Moreira Franco

“Life is much to short and precious to fight mighty wars these days
War can’t give life it can only take it away”
(Barrett Strong e Norman Whitfield)

[…] ‘historical materialism’ – the method of understanding history as a constant feedback loop between, on the one hand, the way humans transform matter and, on the other, the manner in which human thinking and social relations are transformed in return. Assim Varoufakis define, uma boa definição, que para ele tem raiz no seu pai lhe ensinando os metais quando ainda era criança. É sob esse prisma que entendo processos históricos, esse balé entre as possibilidades do mundo material e as alegorias do carnaval humano.

O que pretendo fazer aqui é fechar aquela discussão que comecei no artigo retrasado, sobre o Relatório Draghi. E uma das coisas que há ali, que meu amigo Smart puxou na conversa, é a ideia de que há um investimento na recriação de uma indústria bélica europeia que seria importante do ponto de vista de segurança e, quem sabe, da retomada do desenvolvimento tecnológico do continente. Keynesianismo militar – tá aí uma daquelas coisas que é um dos mitos em que você acredita até que olhe detalhadamente a História, seu lado material, as relações entre as pessoas que ali aconteceram.

Anos atrás, no meu hábito de ficar vendo palestras no YouTube, me deparei com um evento onde estavam Richard Koo (pelo qual eu estava vendo a palestra) e Bruce Greenwald, um cara que eu desconhecia, que tinha sido parceiro do Stiglitz. Greenwald apresentava um argumento algo audaz: a indústria estava virando uma nova agricultura. Algo importante para o mundo, mas que não mais seria um gerador de empregos. Muito pelo contrário, a crise que se vivia e que se viveria naquele futuro que se via década e meia atrás, era análoga à crise dos vinte e trinta nos EUA, uma crise que só se solucionou com a Segunda Guerra. Só que a explicação dele rompeu com minha “inocência keynesiana”: não foi a demanda militar que resolveu a crise. Foi a reestruturação da produção e da demografia, tirando de forma (razoavelmente) ordenada as pessoas desnecessárias do campo que se mecanizava e modernizava, e transformando-as em população urbana, produzindo o milagre de um mundo onde as pessoas farão a demanda dos lares que irão construir: sejam as paredes, sejam os objetos dentro e fora, sejam as relações entre esses jogadores de boliche. A ideia-força do keynesianismo, demanda, é importante do ponto de vista econômico, do ponto de vista do cotidiano percebido pelos agentes, mas não é o cerne da transformação social.

Para que serve uma indústria bélica? Tal como entendo ela serve para produzir armas, o que, tirando uns casos excepcionais, quer dizer basicamente meios de matar pessoas. Armas servem a um poder: ao que é, ao que será, ao que seria. Sem entrar em Clausewitz ou discussões outras sobre a natureza e a finalidade da guerra, armas são para serem usadas em guerra. As vezes tenho a impressão de que isso escapa aos economistas.

Não que a produção de armas não crie, como qualquer forma de gasto público, um efeito sobre emprego e renda. Não que tecnologia não evolua, que pessoas sejam qualificadas para a sua produção. Pontes para lugar nenhum, para um futuro que não virá, também o fazem. Só que pontes para lugar nenhum costumam ser alvo de uma certa repulsa de contribuintes, de pessoas preocupadas com a eficiência do Estado. Gasto militar, portanto, tem que ter um propósito não econômico, um propósito militar. (Já “tretei” este assunto aqui no VÍNCULO, vou tentar não ser repetitivo).

No caso da Europa, que se enxerga sob o medo imaginário de uma invasão russa, seria totalmente justificável. A Europa foi palco de incontáveis guerras. Da Nova Ordem Mundial para cá a Europa foi palco das guerras civis na antiga Iugoslávia e do ataque da OTAN à Sérvia, além da recente guerra civil na Ucrânia. Antes disso, a Europa passou as décadas da Guerra Fria sem guerras (na Europa, pois fora dela guerras coloniais e vestígios de imperialismo continuaram acontecendo), mas com um gasto e uma mobilização que faziam algum sentido ante a percebida ameaça soviética. Mas do início dos 90 para cá, tanto os formatos de mobilização, quanto o gasto em si, implodiram. O que fazia o maior sentido.

Nos EUA o gasto também diminuiu, para retornar glorioso e desmedido após o 11 de setembro. E aí é importante ver de que se compõe esse gasto americano, disparado o maior do Mundo. Para começar, há centenas de bases pelo mundo afora. Bases são um importante gasto de construção civil, lucros para as empresas que constroem essas bases. Lucros para as empresas contratadas para fornecer combustível, comida, o que quer que seja para elas. Lucro para manter os brinquedos operando nessas bases.

O que essa estrutura produz de fato? Uma visualização clara da hegemonia americana? Sim, podemos dizer que sim. Ordem? Aí é mais complicado. Se há uma coisa que as intervenções militares americanas dos noventa para cá certamente não produziram foram Estados capazes de funcionar ao menos tão bem quanto antes da intervenção.

Mas esse tipo de guerra no qual os americanos estiveram envolvidos após a guerra fria levou a deformações de caráter das forças armadas americanas. Hierarquia, treino, equipamento foram sendo reconfigurados para este novo tipo de guerra da potência hegemônica unipolar: o esculacho sobre países e povos com baixa tecnologia, guerras continuadas de baixa intensidade ou de shock and awe. O que quer dizer que o aparato necessário a travar uma guerra continuada contra um adversário de mesmo quilate foi gradualmente sendo perdido – e o que se pôs no lugar foi a maravilha capaz de fazer essa blitzkrieg simbólica que é shock and awe.

Mas tem aquele problema do que virou o (será que ainda é) capitalismo ocidental dos 80 para cá: o objetivo das empresas é maximizar o valor de suas ações. Portanto, produzir algo que em si seja útil ao seu consumidor – e ter lucro decorrente do sucesso nessa empreitada – não é propriamente o objetivo primário dessas empresas. Cada vez mais concentradas, com uma capacidade grande de influenciar as decisões de demanda sobre elas mesmas, a consequência que se tem é a aquisição de equipamentos cada vez mais caros e de performance duvidosa.

No imaginário de um keynesianismo militar, é como se a produção de B-24 Liberators pela Ford na Segunda Guerra fosse uma alternativa de geração de demanda ao invés do Super DeLuxe. Só que a forma como o gasto militar foi se reconfigurando leva a uma outra metáfora: não são Fords F-150 que serão produzidos pela indústria bélica, são Porsches e Bugattis. Isso dá uma boa rentabilidade para as empresas, um bom impacto para seus acionistas, mas do ponto de vista de emprego e performance militar, o buraco é mais embaixo. Do ponto de vista de quanto isso impacta o desenvolvimento de tecnologias para outros setores, é mais complicado ainda. Houve no passado, não sei o quão significativo será isso hoje. Se há dinheiro da defesa em toda gênese e evolução da internet, coisas como o F35 trazem muito pouco impacto no desenvolvimento de tecnologias que serão usadas por outros setores. Sob o prisma do keynesianismo, embora os fatores de produção “desempregados” em teoria possam estar sendo mobilizados pelo gasto militar, na prática isso não acontece mais. A produção militar acontece numa esfera à parte, com requisitos próprios de performance cada vez mais descolados dos usos civis.

Há o problema fiscal – e esse é um dos cernes do problema europeu. Se esse gasto tem como contraparte um maior endividamento, maiores impostos ou retração no gasto social, em qualquer desses casos há um impacto político maior do que os prováveis benefícios disso para a sociedade como um todo. E essa é a parte complicada dessa agenda de uma Europa que busca retomar algum protagonismo num mundo multipolar, no qual a possibilidade de se fazer isso não mais existe.

O quanto essa questão militar na Europa hoje não é um mecanismo de tomada de poder interno pelas estruturas burocráticas da Comissão Europeia mais do que uma ameaça concreta russa ou uma simples rendição à hegemonia americana? Essa é a pergunta que fica no ar. E nesse sentido o relatório Draghi pode ser entendido como uma peça desse processo de tomada de poder.

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