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Entre os voos, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

“Curar com uma revolução liberal um país estragado, como são todos os da Europa, é sangrar um tísico: a falta de sangue diminui as ânsias do pulmão por algum tempo, mas as forças vão-se e a morte é a mais certa”

(Viagens na Minha Terra)

Nessas três semanas de intervalo, querida leitora, estive, por assim dizer, “de férias”. Daí não ter coberto a posse de Trump, Nikolas vs o Governo Lula, os perdões de Joe Biden, o cessar fogo em Gaza, o… cara, muita, muita coisa anda acontecendo. Como Ulisses ouvi dessas sereias o canto em meio à viagem. Não tinha como parar, escrever, limitado que estava a um smartphone, um oceano distante. Tornei-me no processo um homem de 62 anos: não domino a arte de escrever em velocidade com o polegar. Atabalhoadamente, minha mão esquerda segura o aparelho enquanto o indicador direito cata as letrinhas, um esforço não muito prático se você vai escrever um texto longo.

A última vez que lá estive foi durante a Olimpíada de Londres. Era um Portugal carregado de uma estranha tensão naquele tempo. Sob a bota pesada da Troika – e põe pesada nisso –, as pessoas estavam quase sempre nervosas, tensas. Para a periferia europeia, a década passada foi uma década de um intenso sofrimento econômico causado por instituições europeias interessadas em afirmar seu poder, decretar suas verdades técnicas. Mas agora Veritas vai se desfazendo – e a verdade sendo desvelada –, eleição a eleição na OCDE, vila a vila na Antiga República Socialista Soviética da Ucrânia.

Há outra vibe em Portugal agora. A tecnocracia europeia mudou de alvo. Politicamente, o país se vê sacolejado por um conjunto de idiotas à direita, o Chega. Você se pergunta por que não disse “sacudido”. Sacudido daria mais relevância do que realmente eles têm. E tendo em vista a peculiar história de que um dos deputados do Chega era aparentemente um “cleptomalíaco”, qual seja, um especialista em roubar malas em aeroportos (para depois vender roupas usadas online), sacolejar cai muito bem. Terá ele se inspirado em Sam Brinton, o “cleptomalíaco” não binário do governo atribuído a Biden, que roubava malas contendo roupas fabulosas para deslumbrante uso próprio?

Essa era uma das notícias discutida na TV durante as manhãs dos dias em que lá estive. Algo que fazia muito tempo que não fazia: estar com a TV ligada num programa de notícias de manhã. Hábitos. Há hábitos que você teve um dia, mas mudam com o tempo. Duas, três décadas atrás, raro o dia em que o ato de sair da cama não fosse seguido por algum noticiário de TV a cabo (BBC, Globonews) e pela Folha e pelo O Globo (e nas décadas antes, o JB apenas). Hoje, acordo com X/Twitter e Telegram, que me acompanharam na viagem, embora com restrições. Na rua, telefone brasileiro sob roaming, Sputnik Brasil e RT News são acessíveis no meu Telegram. No wifi da casa dos meus primos, são bloqueados (como, por exemplo, por decisão do TSE, é cá o grupo de discussão – mas não o canal em si – do Slavyangrad, comunidade que basicamente discute guerra na Ucrânia).

Mas meus primos, um de 79 anos, outro de 68, por mais que digitalmente instruídos, com seu uso constante de Facebook (rede da qual nunca fiz propriamente parte), com sua utilização dos recursos de controle de voz para buscar informações e direções, ainda são criaturas do mundo tradicional de informação. Mesmo os comentaristas sobre a guerra na Ucrânia que eles seguem no Facebook eles também os acompanham na TV. Por que destacar isso? Porque um dos aprendizados que é necessário se ter da eleição de Trump – que por conta de seu filho Barron pesadamente utilizou as aparições em podcasts, em oposição à TV onde sua imagem fora criada – e da expressiva votação de Pablo Marçal para prefeito de São Paulo, é que há um colapso do papel do quarto poder. E, entrando na discussão sobre o episódio Nikolas versus o futuro Fernando III, há um pesado equívoco na forma “How Do You Do, Fellow Kids?” com que o Governo Lula está tratando sua comunicação. Esse processo deveria estar sendo conduzido por pessoas pelo menos uma dúzia de anos mais nova que eu, por pessoas não comprometidas com a indústria de comunicação, por pessoas não vinculadas à lacração para grupinhos dentro da esquerda. Lembram do Fatos e Dados da Petrobras, ano de 2009? A imprensa chiou pois perdeu sua capacidade de produzir fake news notícias, como reclama hoje do Community Notes do X/Twitter, mas ali se formou um espaço de discussão política e houve uma vitória. Só que essa, sintomaticamente, foi uma experiência esquecida pelo atual governo. Why uai?

Mas voltando a voltar a Portugal, dessa vez eu basicamente abandonei qualquer plano maior sobre atividades a serem feitas e fiquei o tempo todo na companhia de primos. Tirando um par de momentos, especificamente com esses dois primos mais velhos, também aposentados, benfiquistas, bastante inteligentes, e mais convictamente ateus do que eu, que sempre faço um respeitoso sinal da cruz ao entrar em qualquer igreja. Viajar assim, sem a obrigação de ticar missões de lugares visitados, passando por exemplo um chuvoso domingo em Vigo conversando e comendo e tomando vinho na casa de um amigo de um primo, a belíssima Ria de Vigo visível na paisagem cinza, é das coisas que nunca planejamos, mas são a própria vida acontecendo, simplesmente acontecendo.

Mas voltando a Portugal, doze anos depois. Lisboa em pleno inverno tinha uma grande quantidade de turistas, boa parte nitidamente chineses, caminhando por suas áreas históricas. Se do ponto de vista de vários negócios isso é interessante, o que tornava aquele espaço interessante está crescentemente sendo descaracterizado. Onde havia a Suiça, uma tradicionalíssima confeitaria que frequentei quando criança, hoje há uma Zara. Abriu-se uma pseudo-Suiça num lugar próximo, mas mesmo um simpático e jovem garçom com quem conversamos reconheceu que não havia propriamente continuidade.

Mas não só em quem passa Lisboa está mudada. Num dos jantares, com outros primos, um amigo destes, do setor imobiliário, fez umas observações que eu nunca havia pensado sobre multiculturalismo. Pense um prédio em Lisboa hoje (mas pode ser Barcelona ou qualquer outra dessas cidades onde a vida é interessante). Há um americano, que teletrabalha em San Francisco, Califórnia. Morar em Lisboa é bem mais barato, bem mais cool. Só que enquanto as pessoas tentam dormir você está falando em reuniões que acontecem com Sol a pino na Costa Oeste, com seu fone de ouvido e sem ter muito claro o volume de sua voz. Há pessoas do Raj e adjacências. O feijão com arroz deles é caril, o que deixa o prédio todo com aquele cheiro. Uma das razões pelas quais raramente minha mãe fazia sardinha assadas (que ela adora) é porque o prédio todo fica com cheiro delas sendo preparadas. Com curry é a mesma coisa. Ou pegue as crianças no andar de cima ao seu, onde os pais deixam que elas andem de rollerblade pela casa. E por aí vai…

Multiculturalismo em lugares como Nova Iorque no início do século XX, Alexandria, Odessa, Esmirna, cidades cosmopolitas de diferentes eras, significava a existência de bairros onde pessoas de diferentes culturas praticavam os hábitos de sua cultura entre si, com os limites de convivência estabelecidos por essas culturas, com suas regras próprias. Não é o que acontece hoje. Há um choque, há pequenos desconfortos cotidianos. Claro que as pessoas reconhecem que os nepaleses que estão onipresentes em Lisboa são empregados com excepcional ética de trabalho. E que há dois tipos de brasileiros: uns que estão trabalhando em shoppings, que são bastante simpáticos; e uma espécie de elite que vive a reclamar do Brasil (e de tudo), na sua maioria reacionária, que foi para lá usufruir de um país que funciona, de fato, porque tem um estado de molde social-democrata.

No mais, num dia em que fui comer num simpático restaurante goano no bairro das Colônias, cujo vindaloo eu recomendo com entusiasmo (já o conheci em 12), havia uma simpática tertúlia (Saberes e Sabores) de pessoas pelo menos uma década mais velhas que eu celebrando o aniversário de duas pessoas. Registrei o mais notável canto de parabéns que já vi:

“Parabéns a você
Nesta data querida
Muitas felicidades
Muitos anos de vida
Hoje é dia de festa
Cantam as nossas almas
Para os meus q’ridos amigos
Uma salva de palmas”
A melodia? Um velho, belo hino

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