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Nem sempre ganhando, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

“Mas em casa de ferreiro
Quem com ferro se fere é bobo
Cria fama, deita na cama
Quero ver o berreiro na hora do lobo”

(Guilherme Arantes)

1941. Sob pressão de um boicote americano no qual o acesso ao petróleo vindo da Indonésia e dos EUA foi cortado pelos americanos, o Japão atacou Pearl Harbour e invadiu as colônias holandesas e britânicas que estavam ao alcance de sua Marinha. Algo rápido, contra impérios distantes. Não fizesse isso a rendição do Japão seria inexorável: tanto a Marinha Imperial quanto os aviões do Exército deixariam de funcionar sem petróleo. Seu poder militar, construído por décadas desde sua icônica vitória sobre os russos em 1905, não tinha sequer um ano de vida pela frente. Uma guerra entre a potência imperialista japonesa e os EUA, na disputa pela hegemonia no Pacífico, começou… e terminou com a vitória dos autossuficientes americanos.

A comparação com os controles chineses à exportação de terras é uma das coisas mais óbvias de se fazer. E errada, errada em muitas direções. Mas antes de chegar a isso, permita-me, leitora, que eu cometa um pequeno momento de mansplaining. Desculpa, tá?

Imperialismo! Essa é uma palavra usada a torto e a direito (raramente à direita) no discurso sobre política externa. Tirando o momento em que a uso como xingamento, “imperialismo” para mim é algo que acontece num tempo específico, num contexto específico (como é o caso de “fascismo”, um parente dele). Condições para que o imperialismo acontecesse: indústria precisando de matérias-primas para serem trabalhadas; meios de transporte de cargas movidos a vapor, permitindo que grandes quantidades de matérias-primas sejam transportadas de forma temporalmente precisa; um estado nacional moderno capaz de praticar imperialismo coexistindo com áreas no planeta que não são estados nacionais modernos, nem têm capacidade de sê-lo dentro daquele contexto civilizacional; competição entre esses estados nacionais, seja por prestígio, seja por hegemonia, seja pelos interesses de seus governos e de suas burguesias. Último quarto do século XIX, terminada de se resolver a organização do espaço europeu sob os limites de estados nacionais tal como corriqueiramente os entendemos até hoje, esse coquetel se completou e a corrida imperialista começou (e inclua o Japão Meiji nesse conceito de Europa). Início do século XX, o petróleo se tornou claramente uma necessidade para o funcionamento do aparato militar, com a substituição de barcos a vapor por navios mais eficientes movidos a óleo, com a incorporação do avião e do automóvel – e um elemento crítico entrou nessa história.

Dois lugares não tinham propriamente necessidade de imperialismo: EUA e Rússia. No seu espaço nacional eles continham basicamente o que se precisava de matérias-primas para fazer funcionar sua sociedade e seu poder militar. E petróleo, principalmente. Mas eles eram, digamos assim, a periferia de um mundo no qual uma disputa hegemônica entre potências europeias vinha ocorrendo havia séculos. E essas duas potênciasEUA e Rússia/URSS – vão substituir os patéticos europeus após a Segunda Guerra, promover movimentos de descolonização que vão (tentar) estruturar o restante do mundo em estados nacionais após a Segunda Guerra Mundial. Mas eles se entendem como os novos jogadores da mesma mesa de pôquer onde o objetivo de jogo é ter todas as fichas sob o manto de sua hegemonia, Esparta e Atenas num mundo maravilhoso sem persas.

Quando a história termina na virada entre os oitenta e noventa muita coisa não se percebeu (o que escrevo aqui, amiga, é vago, tentativo, ideias que me vêm de improviso enquanto no fundo o computador toca Keith Jarrett improvisando meio século atrás). Talvez a principal seja que, no âmbito do desenvolvimento de forças produtivas pós-segunda revolução industrial, do ponto de vista econômico o Estado Nacional não faça mais tanto sentido assim. Tanto que o neoliberalismo, ideologia dos tempos do fim da história, derivou-se do pensamento de intelectuais do Império Austro-Húngaro, aquele pedaço então anacrônico da história europeia extinto na Grande Guerra. O mundo metalmecânico pode acontecer, com devidos limites, no espaço de um país (DAF, Volvo, Skoda, por exemplo). O mundo do chip, não. Esse tem questões de escala e a velocidade da lei de Moore rasgando com os limites do Nacional. Para usar um exemplo de mitologia, Banner virando Hulk, o automobilístico são as calças, que até sobrevivem, mas o que vem depois deixa tudo em frangalhos.

(A hegemonia do dólar é coisa que vai ficar para outro artigo, combinado? Mesma coisa uma discussão de classe subjacente a esse processo: vai ficar pra depois). Feita essa digressão, voltemos a 2025.

Os EUA, na esquizofrenia de um processo revolucionário, dão vazão a todo conjunto de contradições que um processo desses carrega. Ao mesmo tempo em que os EUA agem como se sua hegemonia unipolar ainda existisse, ao mesmo tempo é clara a necessidade de se estabelecer a mesa de pôquer do mundo multipolar. Exemplo de multipolaridade: século XIX, Napoleão derrotado. 99 anos de Pax Britannica se sucedem. Um acordo restaurou uma ordem europeia onde as potências – e não toda miríade de pequenos estados europeus – sentaram e organizaram um mundo onde guerras iriam ocorrer na Europa, territórios foram “unificados” na forma de Alemanha e Itália, fronteiras foram mexidas, espaços além-mar expropriados e apropriados das mais diversas formas. Mas uma conflagração generalizada entre essas potências não ocorreu. Multipolaridade é isso, um convívio entre fortes. Hegemonia é possível nesse arranjo? Sim, se ela decorre de forma “suave” no funcionamento do sistema, mas não propriamente com o tipo de disputa egóica implícita numa interpretação de hegemonia que envolve a necessidade de supressão violenta de rivais.

Tanto os EUA quanto a China (quanto a Rússia sob muitos prismas) são espaços com escala, tecnologia e autossuficiência material e humana bastantes para poder manter seu desenvolvimento. Suficientemente autônomas se necessário em relação à globalização. Não que os EUA o sejam hoje, na prática. Mas o potencial lá está dado, é uma questão de que país será refundado nesse processo de dissolução em que ele se encontra.

A Europa é outro caso. A Europa é uma abstração burocrática jurídica-financeira sobre realidades políticas nacionais cada vez mais fictícias, mais sob cheque dos eleitorados insatisfeitos. Se o processo revolucionário que acontece nos EUA tem uma provável convergência final em algum tipo de ordem, a Europa tem pela frente o retorno da fragmentação sem nenhuma amarra simbólica que os unifique numa estrutura imperial funcional. Puro saco de batatas.

E a China? A China está de boa. China e Rússia desenvolveram, cada uma à sua maneira, resiliências para resistir às imposições da ordem unipolar. No caso da Rússia, a capacidade de manter sua produção militar e sua autossuficiência alimentar. Isso fez com que as sanções aplicadas pelo Ocidente após 22 fossem basicamente inócuas (até porque a Rússia está sob sanções desde 17… 1917). No caso da China, autonomia no seu processo tecnológico e um vetor desenvolvimento de produção de energia apontando para o renovável. Nesse processo, a China consolidou/ganhou uma série de monopólios dentro da globalização. As sanções aplicadas contra a China têm pouco efeito. Já as sanções aplicadas pela China têm muito efeito. Muito.

E nesse sentido é que se deve entender as jogadas da China. Em resposta às mais recentes sanções americanas, os chineses resolveram reforçar o seu regime de controle sobre o uso de terras raras – um conjunto de metais muito chato de se extrair que basicamente é a primeira das fileiras soltas embaixo da tabela periódica. Muito de eletrônica contemporânea envolve esses materiais, seja nos equipamentos de produção, seja nos equipamentos produzidos em si. De imãs de caixas de som a equipamentos de ressonância. A China tem virtual monopólio na produção desses materiais na qualidade necessária para esses processos. Criar uma alternativa é um processo no qual os americanos tomarão muitos anos. Muitos. Isso significa que não há armas e munições modernas que possam ser produzidas pelos EUA sem autorização chinesa. Simples assim.

Mesma coisa o caso da Nexperia, a empresa de chips holandesa (que na verdade é chinesa). O governo holandês cedeu a sanções americanas. Os chineses, que são parte central da produção da cadeia global de uma empresa pertencente a eles, resolveram retaliar com sanções que basicamente inviabilizam a produção da empresa. Consequentemente, a Volkswagen na Alemanha suspende sua produção.

Voltando à questão: tem como se responder ao dobrar da aposta dos chineses com um all in americano, como fizeram os japoneses no seu inverno de 41/42? Não. Não há algo como o petróleo da Shell a ser tomado. Não há como repor sequer as munições modernas. Não há como se manter um mínimo da qualidade de vida que os americanos contemporâneos estão acostumados. Quando a ilha de Formosa, por delicada rendição antes que termine essa década, voltar a estar sob o governo da China, muita água terá corrido, mas alguns dos anéis ainda estarão nos dedos americanos. Num mundo multipolar, isso é o bastante.

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