Maurício Borges Lemos – Economista, professor titular da FACE/Cedeplar/UFMG, ex-diretor do BNDES
Vínculo 1337 – Duas condições básicas são imprescindíveis para o desenvolvimento econômico. A primeira consiste na construção de externalidades positivas, configurando um ambiente locacional favorável para os investimentos. Estas se baseiam na disponibilidade de infraestrutura física e humana (esta última tendo como epicentro saúde e educação) e, concomitantemente, na existência de aglomerações. Assim, as aglomerações viabilizam economicamente a construção da infraestrutura, a qual gera mais aglomerações, configurando um círculo virtuoso (do desenvolvimento) ou vicioso (do subdesenvolvimento). Indiretamente, a disponibilidade de infraestrutura viabiliza a formação de aglomerações de MPMEs, as quais são também produtoras de importantes externalidades, que se tornam decisivas para a construção de um ambiente locacional favorável.
A segunda condição consiste na construção de uma Base de Exportação (BE) de bens e serviços, a mais dinâmica e diversificada possível. Esses negócios competitivos do país têm por pilar todas as externalidades positivas, ao mesmo tempo em que as incrementam, configurando o círculo virtuoso do desenvolvimento.
A macroeconomia do mainstream, autodenominada “a corrente principal do pensamento econômico”, trabalha com a hipótese da concorrência perfeita, considerando que tais externalidades positivas (simplesmente a base estrutural para o desenvolvimento econômico) são apenas exceções, portanto, irrelevantes para a análise econômica. Para os investimentos serem dinamizados, bastaria a volta da confiança, centrada no ajuste fiscal e outras variáveis macroeconômicas. Assim, por hipótese, instituições como o BNDES seriam desnecessárias. Como a questão dos investimentos é uma questão de crença ideológica, poderíamos sintetizá-la na seguinte frase: “se Deus quiser, cumpridos todos os purgamentos, os investimentos virão”. Mas Deus pode não querer… e aí precisaremos de instituições como o BNDES.
1. O papel mais importante do BNDES: ajudar na construção da infraestrutura brasileira
Sinteticamente, uma instituição como o BNDES poderia realizar três tipos de ações em prol do desenvolvimento econômico:
Uma primeira, e talvez a mais importante, seria baseada em sua antiga e reconhecida expertise em projetos, atuar na viabilização da construção da infraestrutura física do país. Uma vez que, historicamente, o investimento estatal tem problemas estruturais de governança, tornou-se consenso, no Brasil, em todos os governos desde a democratização, incluídos os 13 anos de governo petista, que os investimentos em infraestrutura precisam ser privatizados. E essa privatização, podendo até incluir, eventualmente, a riqueza velha, já criada, teria de ter por eixo o investimento novo. Viabilizar isso deveria ser uma das primeiras e mais importantes missões do BNDES, na verdade aperfeiçoando o que já vem fazendo ao longo de toda a sua história, e, em especial, nos últimos 20 anos.
Ações de três tipos poderiam ser realizadas pelo BNDES em seu apoio à construção da infraestrutura. Uma primeira, básica, seria simular os possíveis cenários e estimar a taxa de retorno dos projetos. Com essa caracterização, o poder público seria devidamente balizado para uma definição da política governamental a ser adotada para determinado segmento. A segunda, mais complexa, seria definir o funding adequado para a viabilização de cada projeto. A terceira seria participar, se necessário, da viabilização deste funding adequado, o qual, sinteticamente, poderia prever duas situações de enquadramento:
i) Se, por acaso, a taxa de retorno simulada for inteiramente compatível com soluções de mercado, seja do ponto de vista do financiamento, seja ponto de vista do funding (consolidação do capital), o BNDES poderia, se necessário, atuar complementarmente no financiamento, ao lado das instituições financeiras do mercado;
ii ) Se, por outro lado, a taxa de retorno for inferior ao mínimo necessário a uma solução de mercado, a missão do BNDES será estruturar alternativas de funding que venham a viabilizar o empreendimento.
Sobre o funding adequado no contexto desta segunda hipótese, poderíamos dizer que a solução clássica tem sido a criação formal ou informal de PPPs, cabendo ao poder público complementar o capital do empreendimento, tornando-o compatível com a taxa de retorno do mercado. Como o problema estrutural das PPPs é a não confiabilidade do próprio poder público, uma solução mais simples seria a criação, por programas, de moedas especiais (subsidiadas, tendo como referência o custo de financiamento da dívida pública), sendo a TJLP mais conhecida e utilizada em termos de volume e tempo de duração. O custo fiscal da criação de uma moeda especial poderia ser equacionado por programas. Os termos deste equacionamento, já realizado a nível mais agregado por técnicos do BNDES, incluem desde os impostos e dividendos embutidos nos spreads do Banco, até os impostos embutidos nos efeitos multiplicadores e aceleradores.1 Ponderando todas as variáveis, chega-se ao resultado fiscal esperado de determinado programa. Se tal resultado for positivo, um simples financiamento com moeda especial seria suficiente para viabilizar o investimento, tornando-o financeiramente sustentável tanto para o setor público quanto para o privado.
Ainda assim, mesmo com a definição de programas e projetos com consistência fiscal, seu funding apropriado pode não estar garantido, seja pela concentração e escassez de virtuais operadores com capacidade de capital (equity), seja porque, em vista disso, a solução estrutural historicamente recorrente nas economias periféricas – o recurso ao capital estrangeiro em projetos de infraestrutura – é macro-economicamente inviável.2 Aqui, mais uma vez, o BNDES poderia ajudar, seja configurando um programa de renda variável, em consonância com uma proposta de moeda especial para o financiamento, seja criando uma moeda especial para a previdência complementar, saindo daí o equity vital para os projetos de infraestrutura.3
Entretanto, mesmo com moedas especiais para o financiamento e para o equity, há projetos de infraestrutura, imprescindíveis para o desenvolvimento, cuja taxa de retorno obrigaria necessariamente à utilização explícita dos esquemas de PPPs. Seria o caso, por exemplo, da construção da rede metroviária, da rede ferroviária (na maioria dos casos) e da universalização do saneamento básico. Partindo do suposto de que a governança privada ajudaria muitíssimo na minimização de custos de investimentos dos projetos nesses setores, o BNDES poderia, mais uma vez, ajudar como interveniente da execução das garantias, viabilizando a participação privada nas PPPs.4
2. Segunda missão do BNDES: apoio decisivo às MPMEs
Na verdade, ao lado da infraestrutura, que por sua própria natureza é caracterizada pelas externalidades, constituindo um entrave a ser superado para se alcançar o desenvolvimento, as MPMEs mostram-se imprescindíveis para a realização das mais diversas tarefas microeconômicas, desde a banal gestão de mão de obra pouco qualificada até as etapas iniciais de surtos de inovação tecnológica. Em sua forma mais eficiente, elas tendem a existir e buscar formas de aglomeração, produzindo, nesta condição, externalidades. Assim, a formação de aglomerações de diversos tipos, sejam mais especializadas (distrito industrial marshalliano) ou diversificadas, constituem também um passo decisivo para o desenvolvimento econômico, cabendo ao BNDES criar produtos financeiros diversos, tendo como base uma moeda especial, para viabilizar a expansão das MPMEs. Neste caso, alternativamente, poder-se-ia deixar que as próprias forças de mercado conduzissem as empresas financiadas à forma aglomerada, seja apoiando explicitamente a formação de distritos industriais, no contexto de políticas industriais adotadas pelos governos.
Ao longo de sua história, o BNDES adotou vários programas para incentivar as MPMEs, sendo o mais conhecido e bem-sucedido o cadastro FINAME, criado em 1964, cuja característica essencial não é a de constituir uma política nacionalista, mas de prover efeitos multiplicadores (renda, emprego e impostos) que viessem a dar consistência fiscal a um amplo programa, baseado em moeda especial, de formação de capital fixo dessas empresas. Mais recentemente, o BNDES automático e, sobretudo, o cartão BNDES complementaram a tríade de apoio às MPMEs. Entretanto, o passo decisivo, que seria realizar operações indiretas automáticas, em parceria com agentes financeiros diversos, podendo o Banco compartilhar ou mesmo assumir integralmente o risco dos empréstimos, não foi dado.
Os passos iniciais para se chegar a esse ponto foram dados através da criação do Fundo Garantidor do Investimento (FGI), que constituiu uma espécie de ensaio para que, desenvolvendo uma metodologia de compreensão do risco a la serasa, o BNDES viesse, aos poucos, construindo um intangível que lhe permitisse criar um novo produto financeiro: ao lado das operações indiretas automáticas tradicionais, nas quais o risco do empréstimo é do agente financeiro, seria criado o BNDES mandatário, em que o risco dos empréstimos seria compartilhado ou integral e o agente financeiro um mandatário com funções específicas.5 Isso destravaria definitivamente o investimento das MPMEs, resolvendo um dos entraves estruturais para que o país viesse a alcançar o desenvolvimento econômico.
3. Terceira missão do BNDES: apoio à expansão e diversificação da Base de Exportação
Destravada a questão da infraestrutura e dinamizado o processo de expansão das MPMEs, o terceiro tripé do desenvolvimento é a sua transmutação em Base de Exportação de bens e serviços, que deveria se caracterizar pelo dinamismo e pela diversificação. Como um Eximbank, o BNDES poderia realizar três tipos de ações em prol da dinamização da Base de Exportação. Uma primeira, como um corolário da política junto às MPMEs, seria apoiar um conjunto de ações que viabilizassem suas exportações de bens e serviços, os quais estivessem no cadastro Finame ou no Cartão BNDES, seja com produtos financeiros, seja com ações de cooperação na organização de feiras e outros eventos. Uma segunda seria apoiar decididamente as exportações (de empresas de qualquer porte) de bens de capital do cadastro Finame. E, finalmente, uma terceira, reiterar e retomar a política de exportação de serviços de engenharia, que atualmente vem sendo, de forma descabida e irracional, criminalizada por segmentos dos órgãos de controle e da opinião pública.
Essa agenda, que até recentemente poderia ser considerada como permanente, não apenas para o BNDES, mas para a economia brasileira, infelizmente, no momento atual, só pode ser considerada uma agenda para o futuro, uma vez que, no presente, a diversificação e dinamização da Base Exportadora brasileira é uma questão que passa longe até mesmo dos setores pretensamente racionais do atual governo brasileiro.
Ao fim e ao cabo, considerando todas as ações imprescindíveis para o desenvolvimento e que o BNDES estaria perfeitamente apto a realizar, podemos ter uma certeza: sem o BNDES, Deus não vai querer, os investimentos não virão, a pauta de exportações, calcada em bens primários, continuará a sua marcha forçada em direção aos tempos da República Velha e o Brasil continuará avançando em direção ao deserto, cada vez mais periférico e marginalizado.
_______________1 Suponha-se, por exemplo, que o investimento financiado com moeda especial seja uma estrada com pedágio. Além dos impostos e dividendos embutidos nos spreads, os impostos embutidos nos efeitos multiplicadores dos bens e serviços envolvidos na construção da estrada e, posteriormente, o produto da estrada (tráfego futuro projetado) e os impostos embutidos na renda de pedágio (efeitos aceleradores) determinarão o retorno fiscal do projeto, em determinado horizonte de tempo.2 Esse recurso, tão celebrado como solução para a infraestrutura no Brasil atual, foi o modelo brasileiro que vigorou até o início dos anos 50 em alguns dos principais segmentos, como a energia elétrica. É fácil observar que seu problema estrutural está no fato de tais setores serem tipicamente no tradables, sobrecarregando o balanço de transações correntes, especialmente tendo em vista que a Base Exportadora brasileira é limitada, pouco dinâmica e diversificada. Este é um problema recorrente e permanente, mesmo em períodos de baixo crescimento, como aqueles anteriores aos anos cinquenta e posteriores aos anos 70, o que evidencia inviabilidade estrutural da solução via capital estrangeiro.3 O BNDES poderia organizar, em interação com a previdência complementar, um título financeiro lastreado inteiramente em renda variável ligada aos programas em infraestrutura. Isso viabilizaria a formação de consórcios em que a capacidade de gestão de determinado grupo privado passaria a ser mais importante do que sua capacidade de aporte de capital. Essa alternativa não apenas ajudaria a destravar a limitação estrutural de equity e de número de grupos privados com capacidade de operação, como também seria a solução real e efetiva para que a previdência complementar passe a finalmente existir no Brasil.
4 No caso de uma PPP federal, por exemplo, a garantia poderia ser de títulos públicos depositados no Banco Central. Acompanhando o processo de investimento da PPP, de acordo com um cronograma e pari passu ao investimento privado, o BNDES sinalizaria para o TN o momento e adequação do aporte devido que cabe ao governo. Havendo omissão de pagamento, o BNDES autorizaria junto aBCo saque dos títulos dados em garantia. Seja o TN pagando diretamente, seja recorrendo ao saque dos títulos, o momento em que isso ocorrer é que estará produzindo resultado primário, quer a metodologia de medição seja por caixa ou competência. Nos últimos 25 anos, idiotas normativos argumentaram que a simples emissão de títulos, mesmo que depositados no BC, seria fato gerador de resultado primário, contrariando normas contábeis nacionais ou internacionais, inviabilizando, por hipótese, uma solução estrutural para a construção da infraestrutura brasileira.
5 Outro passo essencial para a implementação desse produto também já havia sido dado pela Área de Operações Indiretas do BNDES, que é o relacionamento direto, via TI, com o amplo e massivo universo das MPMEs, de forma a que o Banco viesse a aceitar clientes (e assumir o risco dos empréstimos) com base em seus próprios critérios, e não instrumentalizado indevidamente pelos agentes financeiros.