Pular para o conteúdo Vá para o rodapé

Povo de Rua, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

“Quem viver verá
Nossa terra diferente
A ordem do progresso

Empurra o Brasil pra frente”

(em Brasil Ano 2000)

Proximidades do Carnaval. Século XXII.
Um carro leva uma moça até um terreiro de umbanda. No futuro ainda seremos pessoas. Pessoas com problemas, pessoas com fé. No futuro os espíritos ancestrais ainda estarão presentes, em meio às catástrofes climáticas que serão o novo normal, calores e chuvas maiores do que as que conhecemos neste quente verão de 2025, na Porto Alegre de 2024.

“Amiga, um terreiro muito legal. Fica numa ruazinha chamada Pedro Paulo Rangel. Você pega a Avenida Eduardo Paes que vai dar na Pedro Paulo. É depois da igreja de São Padre Marcelo Rossi.”

No futuro haverá ruas, pessoas de nosso presente estarão registradas nessas ruas, nos monumentos. Quantas pessoas saberiam identificar na história esse General Custer brasileiro que foi Moreira César? Quantos no próximo século saberão de Paulo Gustavo? Alguém ainda rirá de “Minha mãe é uma peça”, não porque não seja ainda engraçado, mas porque esteja soterrado em meio a um infinito de produção audiovisual que estará disponível?

“É uma gira de povo de rua.”

Conhecemos a figura distante do malandro de terno de linho branco e chapéu panamá. Um dia esse foi mais ou menos um personagem concreto dos espaços marginais do Rio. E não se vai tanto tempo assim entre essas pessoas terem existido e seus espíritos terem tomado o papel que têm nos terreiros.

“Tenta consultar Sêo Silveira. É um taxista”

“Taxista?”

Os carros autodirigidos já estão entre nós. Quer dizer, neste planeta, neste tempo. Eles não estão na Barra, onde um dia achei que já estariam neste ano do Jubileu, mas na China. Quem se lembrará desse detalhe, tão trivial e cotidiano para nós, de que para ir de um lado para outro podemos pegar um carro com alguém dirigindo? Que um dia isto foi um trabalho?

Mas hoje isso é um trabalho. Um trabalho icônico. Num tempo em que não havia internet, as redes onde essa incessante conversa acontece, muitos jornalistas celebravam os taxistas como forma de se obter um pulso da pólis. O taxista que ouve as conversas de diferentes passageiros, que passa por diferentes lugares, a rua traduzida em palavras naquele breve período onde/quando quem vai escrever sobre o mundo se desloca. Metaforicamente, podemos considerar então esse tipo de entidade como uma variante de Exú, mensageiro?

“No meu carro não entra vagabundo”, fala o taxista, incorporado, implicando com os Zé Pelintras e demais povo da rua também ali presentes na gira.

“A moça vai prá onde?” Sim, suponho uma moça na consulta. Seja em igrejas, seja em terreiros, a minha experiência pessoal é de que o público presente é basicamente feminino. A fé é um substantivo feminino em mais de um sentido. Sentido, direção. Uma consulta busca saber para onde se vai. O que vai acontecer, o que deve se fazer? Entre aqui e lá, o táxi nos leva literalmente, o taxista guiando no processo.

“Meu…” Não importa os detalhes. Aqui poderia ser qualquer história de amor em crise. Amigo, namorado, marido, o formato que seja o relacionamento, isso não importa de fato. Isso mudará. Já o pronome que denota a ideia de propriedade, de pertencimento: esse sim o cerne do problema (heart, como seria em inglês, palavra deliciosamente mais ambígua, cujo trocadilho se perde nas traduções). Fica para você, leitora, pensar no que seja a demanda, a dúvida, nessa história que esboço (porque não chego a contá-la propriamente. Certamente poderia fazer um conto ou um curta, possivelmente venha a fazê-lo. Agora, fragmentos apenas). Mas daqui a um século haverá ainda amores. As neuroses serão outras, o moralmente correto e o patológico, certamente também outros. Mas essa é uma falta que continuará existindo: a de um desejo que não pode ser atendido meramente com algo que é produzido. Pensar o futuro envolve também pensar que dores que não são materiais continuarão existindo. E as religiões que as consolam, que dão sentido, também.

“O trânsito por esse caminho é muito ruim.”

“Não dá pra senhora zerar sua blockchain, entende? O que tá lá, tá lá.”

Algum ebó será indicado. Um taxista tem sempre uma solução, algum procedimento que resolva o problema. Por vezes, no entanto, a resposta será um pessimista “tem jeito não”. Sempre não é sempre, pois sempre sempre tem um jeitinho, “a senhora sabe como é”.

Batuque encerrado, a pessoa sai. Na noite transparente e quente de um Rio de futura geografia, se consolou/consolidou a dor de um coração. Em algum lugar da cidade alguém ainda ouve a centenária voz de Maria Bethânia, soando tão velha e verdadeira quanto para nós soa Noel Rosa, sincronicidade.

Bom carnaval!

► As opiniões emitidas nos artigos assinados são de responsabilidade de seus autores e não refletem necessariamente a opinião da AFBNDES ou do BNDES.

Associação dos
Funcionários do BNDES

Av. República do Chile, 100 – Centro, Rio de Janeiro – RJ, 20031-170

E-mail: afbndes@afbndes.org.br | Telefone: 0800 232 6337

Av. República do Chile 100, subsolo 1, Centro, Rio de Janeiro – RJ, 20031-917
E-mail: afbndes@afbndes.org.br
Telefone: 0800 232 6337

© 2025. Todos os direitos reservados. Desenvolvido por: MANDUÁ

×