Celso Evaristo Silva – Funcionário do BNDES
Vínculo 1349 – Com o crescimento da extrema-direita no Brasil e no mundo, seria interessante clarificar um pouco os termos mais utilizados para definir esse movimento de defesa dos valores do passado e de “retorno” a eles, mesmo quando se mostram inexequíveis. A direita e suas vertentes mais extremadas são associadas a essas três correntes: conservação, tradição e reação. Cabe, no entanto, distinguilas.
O reacionarismo tem por base a recorrente desvalorização do tempo presente, em nome de um passado nostálgico, do tipo: “Antigamente era ‘assim-e-assado’… bem melhor do que hoje…”. No geral, esse passado idílico nem mesmo existiu. Para ilustrar podemos fazer referência a alguns contos e até filmes cujos enredos se desenvolvem na Idade Média europeia. Os personagens são belos príncipes e princesas; cavaleiros e damas dignos de uma Coco Chanel, Yves Saint Laurent ou Lagerfeld. Nobres bem-falantes habitando castelos e palácios suntuosos, tendo a seu redor aldeias bucólicas habitadas por gente simples, mas boa. Igrejinhas, casebres humildes, mas limpos, com cheirinho de torta de maçã preparada pela carinhosa vovozinha; crianças brincando com carneirinhos e fazendo bonecos de neve no inverno. Tudo digno de cartão postal.
Pois bem, sabemos que a realidade dos tempos medievais não era bem essa. Nobres fedorentos, infestados por piolhos, pulgas e sarnas, tomando poucos banhos durante a vida nos seus castelos imundos, rodeados por aldeias não menos infectas. O mínimo de refinamento pessoal e ambiental havia ficado para trás, soterrado pelas ruínas do Império Romano. O conhecimento ficara restrito a alguns escribas e pensadores da Igreja. Reis, nobres, plebeus e camponeses inevitavelmente analfabetos. Pois bem, quando intelectuais reacionários da atualidade promovem ataques à modernidade, defendendo a Terra Plana, o geocentrismo, o criacionismo mais tosco, a desqualificação das ciências, a subordinação incondicional da mulher ao poder masculino, o homossexualismo como doença tratável, no fundo, aparentam querer resgatar um passado impossível de ser trazido a tempo presente, mas tais chistes de irracionalidade bizarra são mera aparência; o que os move mesmo é a luta pela hegemonia ideológica no campo do senso comum; são gramscianos a sua moda.
Por exemplo: tirante os interesses da indústria bélica e a estupidez pura e simples, há muito dessa ideologia reacionária casada com o liberalismo clássico por trás da política de liberação da posse e porte de armas. A “saudade” de tempos mais seguros casada com a valorização do indivíduo acima da sociedade, da coletividade. O indivíduo, segundo essa ótica, não deve delegar ao Estado a responsabilidade de sua própria segurança. Deve ele mesmo defender a si, sua família, sua propriedade e bens.
O mesmo acontece em relação à educação formal dos jovens. Por que caberia – dentro dessa linha de pensamento – ao Estado laico determinar o que o meu ou seu filho(a) aprenderá na escola? Que valores e verdades estarão sendo repassados em sala de aula? Tais valores podem ser contrários aos do ambiente familiar do jovem em questão? Podem ser “moderninhos” demais e, com isso, solapar as bases da estrutura familiar? O ataque ao ensino público libera alunos para o ensino privado ou repassa a responsabilidade pelo aprendizado aos próprios entes familiares. Esse fato social já acontece há bom tempo nos EUA, onde esse ataque ao ensino público laico é mais renhido e sistemático por parte das forças reacionárias. Por essas e outras, a apologia do indivíduo vai de par com a apologia do mercado e sua pretensa “mão invisível”. É por isso que um bom resumo da situação atual do Brasil, que tem os EUA como modelo (ao menos nos aspectos mais perversos da sociedade norte-americana), poderia ser este: “Mais armas, menos universidades públicas”.
O casamento do ultraliberalismo com o reacionarismo cultural espelha bem o tempo presente. O fenômeno manifesto em escala mundial assume ares de tragédia em países como o nosso, cujo nível civilizacional ainda se encontra aquém das conquistas de sociedades mais desenvolvidas.
Na dinâmica social, o conservadorismo ainda procura manter a tradição sem barrar totalmente o desenvolvimento de novas potencialidades, apesar de ter certa dificuldade de aceitar o novo, principalmente se ele caminha no sentido de maior igualdade social. Já o comportamento reacionário ambiciona reverter o movimento da história, tornando infecundo o campo das transformações comprometidas com a justiça social – forçando uma aparente volta ao passado da concorrência perfeita do mercado (que nunca existiu de fato) mesclada com alienantes tradições religiosas. Combinação ideológica estranha que não passa de estratégia para a permanência de estruturas perversas de dominação econômica e opressão política da plutocracia reinante.