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Sob os céus que viram o apartheid, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

Hello darkness, my old friend
I’ve come to talk with you again
Because a vision softly creeping
Left its seeds while I was sleeping
And the vision that was planted in my brain
Still remains”
(Paul Simon)

Amigo,

Seria tão mais confortável eu ficar aqui lacrando contra cretinos do bolsonarismo (no máximo faço alguma piada incluindo ridiculamente Olavo de Carvalho, astrólogo). Ou discutindo aquilo que Jacqueline Muniz chama de operações policiais marketeiras, que andaram paralisando parte do Rio neste início de semana em função de um assassinato acidental de alguns médicos de fora do estado, assunto que teria ficado para esta semana. Eu falei acidental? Sim, achei que foi acidental desde o início. Pense na complexa operação de logística e inteligência que é matar essas pessoas num quiosque da Barra quando seria tão mais fácil fazê-lo perto de casa. Organizem a operação em suas cabeças. Montem como fariam isso etapa a etapa e reflitam: isso funcionaria fora de um roteiro de cinema? Aí lembrem do caso Celso Daniel, em que a mesma corporação de ficcionistas que nos deu a Lava Jato tentou enxergar um crime político. Claro que você vai receber de seu amigo que votou em Aécio, que enxergou a corrupção da Petrobras nos 13 anos do PT, sem jamais ter se perturbado sobre a que havia antes, que é cônjuge de alguém que votou em Bolsonaro em 2018, que, sim, foi um atentado. Mas tudo parece indicar que foi apenas um erro, e digamos que a seleção de pessoas no crime organizado não se dá pela forma como elas são comedidas em sua ação, nem propriamente pela inteligência.

Por que certas coisas aparentemente tão cheias de sentido, aparentemente tão desconfortáveis de serem meramente acidentais, acontecem? Porque shit happens, porque o mundo está cheio das improbabilidades como você estar num Dodge Polara com três torcedores do América, onde um não conhecia os outros dois. Coisas inacreditáveis acontecem, nunca descarte isso.

O Hamas fazer um ataque envolvendo, no mínimo, centenas de pessoas de diferentes unidades, sem que o Mossad, a CIA, a NSA, o MI-6, o Qatar (que é o “inocente” suporte do Hamas – e da Irmandade Islâmica)… não tem como ninguém ter sabido. Não são duas dezenas de caras em quatro aviões. Diz o Egito que avisou Israel de que algo iria acontecer. O que todo mundo se pergunta é: quem permitiu, quem cometeu o erro, por que o fez?

Brincando de detetive, deixo umas pistas, amigo, para que você possa melhor escolher um culpado. Eu confesso que entendo os beneficiados, os prejuízos, as motivações possíveis, mas a cada hora que passa fica mais difícil dizer: foi isso!

O Regime Biden e o MICIMATT (Military-Industrial-Congressional-Intelligence-Media-Academia-Think-Tank complex), para começar. A queda do presidente da Câmara nos EUA significou algo muito complicado: sinalizou o fim do suporte à direita do gasto “militar” americano. America First quer dizer que os problemas dos cidadãos americanos estão na frente dos problemas de Tio Sam, da potência americana. E gasto militar não resolve emprego, segurança pública, desastres de trem e chamas no Havaí. Solução: resgatar urgentemente a ameaça islâmica, um ataque nas terras onde andaram os profetas.

Pequena digressão aqui: existe um grupamento significativo dentro dos evangélicos americanos (certamente há desses hereges por aqui também) que faz uma escatologia onde é necessário que o Templo seja reconstruído em Jerusalém para que o Apocalipse venha. São uma espécie de aceleracionistas saídos de Buffy. Nenhum problema no que as pessoas acreditem, tirando só o fato de que o terceiro lugar mais sagrado do islamismo é a mesquita de Al-Aqsa, no topo do monte do templo… e que mais de um bilhão de pessoas ficará realmente possessa se algo vier a acontecer com ela. O ex-vice de Trump, Pence, faz parte deste conjunto de idiotas. Sua visão de política externa, ao menos oficialmente, é informada por uma interpretação profética religiosa. Bem, antes dele houve Bush, invadindo o Iraque, mais um Dom Sebastião a afundar um império num atoleiro de areia e dívida.

O MICIMATT tem Trump como seu mais terrível inimigo, mais terrível que os russos e chineses. Não que Trump de alguma forma resolva reduzir o gasto militar. Mas suponhamos que ele venha a mudar as coisas, com coisas como navios e aviões que de fato funcionam ao invés de sustentar todo esse establishment atual. Vamos supor que acabe a porta-giratória. Como fica a Lockheed nessa história? Como fica a Raytheon? Como ficam os think tanks propagando The American Way, now with DEI?

O que nos traz Netanyahu. Há muito mais em comum entre ele e Trump do que uma corrupta obscenidade nacionalista de direita e a ignorante devoção bolsonarista pelos dois. Houve Sheldon Adelson. Adelson, um dono de cassinos que se tornou um dos vinte maiores bilionários do mundo, foi o único multibilionário engajado com Trump quando era claríssimo para todos que Jeb Bush seria o candidato republicano. A família de Adelson é dona do jornal de maior circulação de Israel, um jornal gratuito no qual Bibi tem tanto destaque quanto Crivella na Folha Universal. Do ponto de vista do MICIMATT, Netanyahu é um potencial apoiador de Trump. Inimigo, portanto.

Bibi também tem problemas internos sérios. Andou comprando briga com seu Supremo. Fez pacto com todo o tipo de versão local de fundamentalismo. As Forças de Defesa de Israel estão possessas por ele ter posto praticamente todo o contingente do exército brincando de Braga Neto na Cisjordânia, o que deixou desprotegido o Sul onde o Hamas atacou.

Quem permitiu, por que permitiu? Sei lá! Se a cabeça cínica de Bibi ainda estiver na foto de primeiro-ministro, saberemos a resposta.

Mas quem foi o responsável por esse primeiro dominó do que pode ser uma catástrofe não é o crítico. Crítico é se resolver esta confusão, e não há soluções bonitas e viáveis no curto prazo.

Para começar, Israel não é um projeto colonial europeu típico, no sentido de ser suscetível a um processo de descolonização como os que aconteceram após a Segunda Guerra. Ali não houve um estado a fornecer uma elite e uma estrutura administrativa-jurídica-econômica se superpondo à original do território, com os nacionais da potência mantendo nacionalidade e identidade, e podendo ser devolvidos à ex-potência de origem. A coisa mais próxima que se pode pensar do resultado do projeto sionista são os Boers: originalmente holandeses e outros protestantes europeus, sua história tomou rumo próprio, inclusive sendo vítimas do colonialismo britânico (dos primeiros a experimentar um “avanço civilizacional” chamado campo de concentração). Se não estamos na fantasia de uma uniformidade que concretamente não existe no Sul Global (questão de prova: discuta o caso Paquistão e Índia sob a perspectiva de que a culpa do conflito é do “Ocidente”), as situações que envolvem populações que estão, faz algumas gerações, em um território têm que ser entendidas como um problema a ser resolvido naquele território. Como, por exemplo, a população da América Latina, construída sob a mistura de diferentes opressões e migrações majoritariamente involuntárias. Como, por exemplo, as inúmeras populações com origem nos lugares mais diversos da África e da Ásia, que fazem hoje parte, concretamente, da população da França e da Inglaterra.

Concretamente, existe uma realidade de fato há várias décadas e uma fantasia recorrentemente pregada e encenada. A realidade de fato é que Israel exerce o controle sobre o território do que seria Israel e Palestina. Tanto Gaza quanto a Cisjordânia têm tanta autonomia e perspectiva de serem estados quanto os bantustões da África do Sul antes do fim do apartheid. Há o mito de que dá para fazer dois países ali. Ou o de que, por meio de limpezas étnicas, seja devolvendo os judeus à Europa “branca” (como se boa parte da população não tivesse vindo do mundo islâmico), seja expulsando os palestinos para países vizinhos (como se eles não estivessem ali desde…), se resolveria o problema de forma definitiva. Na prática, caminha-se para um país só desde 67. Se mais de década atrás você encontrava este tipo de ideia em lugares de ativistas como Mondoweiss, houve um pega pra capar no início deste ano quando um grupo de notáveis da academia americana verbalizou essa realidade/solução.

E de uma forma particularmente não democrática nos aproximávamos disso. O presidente Trump, autor de The Art of Deal, conseguiu fazer com que alguns países árabes reconhecessem Israel, os Acordos de Abraão. Na prática, isso significava que esses países estavam abdicando da questão palestina. Em médio prazo isso acabaria implicando na aceitação de que aquele território de fato é Estado de Israel. Com o tempo, o passar de anos de luta política interna e pressão externa, a questão poderia se resolver em duas etapas: a extensão aos palestinos dos territórios ocupados dos mesmos direitos de cidadania, não estritamente plenos, da minoria árabe muçulmana e cristã; a remoção gradual dos mecanismos desse apartheid. Não é uma solução que John Lennon aprovaria, não é uma solução que não levaria a muitos conflitos, mas na prática se largaria um conflito insanável com perspectivas de guerra mundial, por um conflito definido por lutas por equidade e diversidade tão ao gosto contemporâneo. É cruel e perverso o que digo, mas a história não se faz de episódios bonitos, e sim de omeletes das aves extintas. Perspectivas idealistas podem fazer bem à consciência, mas mesmo uma solução ruim quase sempre é melhor do que uma consciência tranquila… a menos que você possa empurrar continuamente o problema com a barriga, adiar indefinidamente uma resolução que será mais traumática do que o problema em si.

Irã, Arábia e Emirados entrando no BRICS sob as bençãos da China, num certo sentido, foram mais um sintoma disso, um reforço, o triunfo de culturas da negociação e do mercado (no sentido Bazar de Teerã, e não da Faria Lima), sobre a rigidez diplomática do mundo westfaliano ocidental. E até semana passada havia esperança com o retorno dessa comunhão da Ilha-Mundo sob a égide dos herdeiros das suas civilizações não europeias.

Só que isso inviabiliza a sobrevivência do MICIMATT.

E, portanto, foi permitido ao Hamas perpetrar um crime. O massacre na rave foi um disparate, um ato gratuito da mais deliberadamente espetacular e ultrajante violência. Algo entre crimes “não planejados” de estado como os negligentes assassinatos de pessoas em casamento pelo governo Obama e os massacres promovidos por tropas americanas no Vietnam; e os atos de terror sistematicamente praticados por americanos e israelenses na prática de Shock and Awe. Não há como defender nada disso. Não há como defender essa decisão do Hamas, nem a política de uso de drones de Obama, nem Bush e… Netanyahu.

O que é desejo hoje da direita apocalíptica americana, bem como de parte da Diáspora e dos setores mais reacionários da política israelense, é algo que para o bem da paz desejo não venha a acontecer. Uma política de destruição total de Gaza (que é pouco maior que metade do município do Rio de Janeiro, com mais ou menos a mesma densidade populacional) vai fazer com que manifestações aconteçam numa Europa com muitos muçulmanos e pouco apoio político aos governos que se meteram a fomentar/sustentar a inútil guerra da Ucrânia. Mais do que crimes de guerra, o que Israel anuncia que irá fazer é um erro: o limite moral no qual os vastos crimes de guerra de Israel escapam impunes pode se romper definitivamente.

Vivemos todos essa grande desordem sob o mesmo céu. Pode haver mais poesia no céu de Ícaro do que no de Galileu, mas vivemos num mundo de ciência, das consequências ampliadas desta, e certas fantasias precisam ser necessariamente guardadas pois se tornaram muito perigosas. O céu não pode ruir em função das determinações humanas de justiça. Sob o céu em Sefarad, (bem como nós) todas essas vozes um dia cantaram juntas aos mesmos arcanjos. Que eles não tenham se esquecido de rezar por nós, como nós nos esquecemos de rezar por eles.

Quarta feira, três da manhã.

Abraços, saudades.

Associação dos
Funcionários do BNDES

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