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Descasos, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco –
Economista aposentado do BNDES

“Tell Yudhishthira that a bad king is a contagious disease, that he perverts his age. (…) For all the creatures around him, he is the center. If he is lacking in resolution, his great opponent, misery, will grow rich from his weakness. Tell him I was once a young and beautiful sovereign laden with garlands. He never knew me, but he will know me starving. He will see me broken and demented.”

(O Mahabharata, na versão de Jean-Claude Carrière)

VÍNCULO 1557 – Num artigo alguns meses atrás, “Um ano, uma semana”, eu concluí com o seguinte parágrafo:

“Faltou falar do desmantelamento americano, refletido em sintomas como o acidente de trem em Ohio. Mas isso é assunto mais longo, complexo, polêmico, a ser tratado em outra ocasião. E não vai faltar oportunidade: catástrofes no funcionamento da infraestrutura e do aparato produtivo americano estão se tornando quase tão comuns como os massacres em escolas.”

Quarta eu cruzava a ponte com Fofinha. Pergunto se o lance do Havaí passou na TV. Ela diz que sim, vários dias. Pergunto pelo número de mortes e ela diz algo como cem. E aí digo que, ao que parece, foram mais de mil, sendo que centenas, talvez mais de mil crianças tenham perecido. A cara da motorista é de estupefação.

Passado mais de uma semana as autoridades não sabem dizer quantas pessoas morreram. É como se quisessem que o assunto saísse do ar até o momento em que, casualmente, passe o número despercebido pelo grosso das pessoas imersas em outro cotidiano de notícias.

O que causou a tragédia? Aquecimento global? Não. O fato de que aquecimento global existe não serve de justificativa para a inação. Pelo contrário: se você reconhece a existência do fenômeno, sua responsabilidade é ampliar as medidas de enfrentar os riscos que se tornam maiores. Tenham sempre isso em mente quando alguém, de algum governo ou empresa, botar a culpa de um acidente na mudança climática.

Um jogo de empurra se estabelece num crime em que vários são responsáveis. A empresa de energia não desligou a transmissão com uma tempestade acontecendo. O governo subestimou os riscos de fogo. As sirenes de alerta não foram acionadas. A água é sagrada, diz o cara que zela por ela e por algumas horas se negou a cedê-la. Com o passar dos dias, algumas outras responsabilidades vão aparecendo, como a das barricadas feitas para ordenar o trânsito.

No momento em que o Estado abnega suas responsabilidades em favor da eficiência privada ou de um discurso político centrado em virtudes que não sejam o objetivo em si da ação, ele inicia seu processo de falência. Isso vem acontecendo nos EUA há algum tempo: serviços públicos que gradualmente não funcionam mais direito; empresas cujos produtos não funcionam mais direito, sejam aviões ou filmes de super-heróis; um estado de direito que não funciona mais direito.

Um exemplo dessa falência gradual é o fracasso da tão anunciada contraofensiva ucraniana. Os americanos estariam criticando a aversão a risco dos ucranianos, que ao invés de fazer um ataque com tudo, sem se importar com baixas, tentando cortar a Criméia, fizeram uma tentativa de retomada dos territórios recentemente perdidos. Como se isso fosse possível. Como se as baixas que estivessem acontecendo já não fossem horripilantes. Mas como as mortes no Havaí, quando os números forem finalmente anunciados, a esperança é de que as pessoas estejam preocupadas com outro escândalo nesse momento.

A maior facada no império americano que esvanece, no entanto, aconteceu fora do alcance de seus warfare emprestado e de seu lawfare interno. A ampliação medida dos BRICS é uma das mais notáveis iniciativas que se possa pensar na construção de um novo edifício de normas e instituições internacionais fora do aparato neoliberal construído/reconfigurado a partir dos 80. Tendo Rússia, Brasil e Argentina (coisa que temo não vá acontecer, fruto da estupidez de uma economia agroexportadora que não entende a dissonância entre suas ideologias feitas de passado e sua realidade material presente e futura), o bloco tem o centro do excedente mundial de alimentos. Tendo Rússia, Irã, Arábia Saudita e Emiradose porque não dizer, Brasil – os BRICS têm o centro do excedente mundial da produção de petróleo e gás. Egito e Etiópia acrescentam, a meu ver, duas dimensões simbólicas importantes. Ambos nações africanas, o Egito é o mais relevante dos países árabes do ponto de vista militar. Mas Egito, Etiópia e África do Sul foram as nações africanas independentes que fizeram parte (além da Libéria) da Liga das Nações. A Etiópia é o próprio símbolo da resistência ao colonialismo europeu dos séculos XIX/XX. Essa é uma dimensão que não deve ser perdida. Para nós, do Brasil, não faz muito sentido a dimensão milenar que há na retomada de uma cadeia eurasiana que vai do Egito como o Ocidente, convergência da África e do Mediterrâneo, à China, o Oriente, o Império do Centro. Mas ela existe. Indianos, chineses e russos resgatam suas histórias civilizacionais, as reinventam de forma a construir-se para um mundo não mais euro-anglo-saxão. Histórias muito mais antigas que o mundo tão recente das nações civilizadas de Milei. Aliás, os dois maiores parceiros comerciais da Argentina são BRICS. Comércio ou FMI, o que você, leitora, iria preferir?

Pense nessa pergunta. Você acha que como país devemos nos alinhar com uma determinada ordem material do Mundo ou que valores simbólicos vêm na frente? Quem é o que, os BRICS ou OMC/FMI/OCDE?

A coalizão Lula, como no passado, tenta operar em todos esses planos ao mesmo tempo. Ano que vem teremos uma importante reunião do G20 aqui. E depois teremos uma nova rodada de clima. O quanto essas instituições fazem sentido na nova configuração de poder onde as “nações civilizadas” se tornam um grupo irrelevante, em processo de desindustrialização, enquanto o centro eurasiano dos BRICS não apresenta a menor disposição de frear seu desenvolvimento em função dessas pautas? Tratamos isso com descaso e improviso. Tratamos segundo todo tipo de picaretagem pública e privada que pode representar negócios e relações com as “nações civilizadas”. Esta, a verdade da Ambição, não tenham dúvidas.

Mas esse mundo, como o Havaí, está em chamas. Os mortos não serão contados pois isso atrapalha a guerra sendo conduzida. Seja na Ucrânia, sejam as crianças em Maui, sejam as fábricas fechando na Europa, sejam as lojas sendo saqueadas na Argentina e na Califórnia, tudo isso não pode ser contado, pois “contado, pesado e dividido” é sonho que não convém traduzido no momento.

Muito e muito há para se escrever a respeito pelo próximo ano e meio, ao longo desta década. Por vezes, amiga, você achará que é repetição. Encare como Aleteia, verdade que se revela aos poucos, a poucos.

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