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Em prol de Cidades Boas para Todos (e Inteligentes)

Paulo Faveret – Economista do BNDES

Vínculo 1405 – As cidades brasileiras são feias, cinzas, sujas, congestionadas, poluídas, violentas e desiguais. Não obstante essa realidade quase acachapante, muitos insistem no tema das cidades “inteligentes”. Discordo. Por que valorizar apenas um dentre os vários atributos desejáveis de uma cidade? A cidade tem que ser inteligente ou deve dispor de serviços que habilitem a inteligência de seus habitantes? Qual é o fim último das intervenções no espaço urbano – as infraestruturas, os serviços, as empresas, os governos ou os habitantes? 

A cidadania no Brasil evolui de forma lenta, gradual e insegura. Autores clássicos como Wanderley Guilherme dos Santos e José Murilo de Carvalho mostraram com detalhes as fases, evoluções e involuções, tensões e contradições desse conceito e prática no país. Ainda que a Constituição de 1988 tenha sido denominada de “Constituição Cidadã” por Ulysses Guimarães (como meu ídolo faz falta!), a prática política é imperfeita e ecoa a cidadania incompleta ou tutelada de outros momentos.  

O lugar por excelência de exercício da cidadania é a cidade. Se a cidadania é incompleta, as cidades também o serão. Se a desigualdade é perpetuada por vários mecanismos de poder, as cidades seguirão desiguais. As desigualdades nas cidades são palpáveis, concretas. Iluminação pública, polícia nas ruas, transporte eficiente, qualidade do asfalto, oferta de saneamento, tamanho e frequência das áreas verdes, equipamentos culturais, qualidade das escolas e postos de saúde – tudo isso é diferenciado dentro das cidades, comprovando o enraizamento das diferenças e as imperfeições da cidadania.  

Alguns, pasmem, (re)descobriram a desigualdade durante a pandemia. Nada expressa melhor a cidadania imperfeita do que variados representantes da elite “descobrirem” os “invisíveis” (Maria Antonieta não está só?). Antes tarde do que nunca, dirão os otimistas, mas penso que, não obstante as manifestações de que “agora vai ser diferente”, a inércia e a dependência de trajetória dos mecanismos do poder profundo desaconselham otimismo com a redução das desigualdades. Sabemos da História que a diminuição das desigualdades acompanhou e refletiu movimentos políticos organizados de contestação do status quo, elites que se conscientizaram da necessidade de concessões significativas, ameaças externas (como guerras) e algum grau de homogeneidade da população (é mais fácil ter políticas universais quando a maioria se percebe como igual aos outros). Notem que insurreições, revoltas, violência nas ruas não são fenômenos raros nos processos políticos que resultaram em atenuação das desigualdades. Importante ainda frisar que as políticas de governo foram decisivas em todos os casos, ainda que de maneiras diferentes. 

Nesse contexto, o lema da “inteligência” das cidades (termo que reifica relações sociais) é inapropriado, fora do lugar – mesmo estando no seu tempo. Não podemos desconsiderar que as cidades brasileiras vivem dramas dos séculos XIX, XX e XXI, num autêntico “tudo ao mesmo tempo agora”, e assumir que uma muito restrita visão de inteligência seja “a” agenda urbana. Ela é parte de uma agenda mais ampla. 

Proponho que a orientação geral, a ambição que deveríamos abraçar seria reformar as cidades brasileiras com o objetivo de atuar nas questões em aberto do passado – como saneamento, habitação e transportes –, mas também nos temas do presente, como (vá lá!) inteligência, sustentabilidade (com foco importante em áreas verdes acessíveis a todos) e cultura. Ou seja, cidades boas para todos e inteligentes também. 

Dentro dessa agenda, um critério importante deveria ser a beleza. Nossas cidades são muito feias, por várias razões. A arquitetura do Rio de Janeiro, por exemplo, insiste em desafazer o presente da natureza, com raras e mui honrosas exceções. A feiura se liga à despadronização, ao caos visual, que pode ter seu charme para alguns, mas gera estresse para os moradores e outras disfuncionalidades. Promover arquiteturas públicas e privadas que valorizem a beleza pode ser um caminho para recuperação de autoestima e, portanto, da capacidade dos habitantes terem disposição para lutar por sua cidade. Talvez fosse melhor falar de “belezas”, porque poderia haver inclusive certa descentralização de belezas, gerando diferentes identidades ao longo de diferentes espaços, sobretudo nas cidades grandes. 

Dentro do quesito beleza, a criação de muitas e amplas áreas verdes é elemento central. Preocupada com a situação da classe trabalhadora, a rainha Vitória advogou e promoveu a criação de parques nas cidades inglesas. Os trabalhadores seguiram vivendo em casas pequenas e humildes e trabalhando em fábricas hostis e poluídas, mas passaram a dispor de espaços verdes abertos e democráticos para seu lazer. Parques e praças públicas e gratuitas deveriam ser parte inseparável de qualquer pacote de investimentos de desenvolvimento urbano. As cidades feias que me perdoem, mas beleza é fundamental! 

A reforma das cidades brasileiras provavelmente é a maior frente de investimentos que podemos ter nos próximos anos. Saneamento + habitação + transportes requerem altíssimos volumes. Áreas verdes pedem menos recursos, mas ainda assim relevantes porque muitas desapropriações seriam necessárias para a criação de parques e praças em todas as regiões da cidade. Os investimentos em tecnologia já estão em curso e talvez nem sejam tão altos porque têm sido feitos por meio de parcerias público-privadas. 

Recente estudo do WRI estima ser possível criar dois milhões de empregos com a implementação dos investimentos para aumentar a resiliência climática. De onde virão os restantes 10 milhões de empregos para atender aos atuais desempregados? Se nada for feito, (não) virão dos serviços de baixa qualidade, claro, porque a indústria não vai contratar em larga escala, por razões sobejamente conhecidas, e a agricultura emprega cada vez menos por unidade de produto.  

Por tudo isso creio que só há uma frente capaz de criar muitos milhões de empregos – a renovação radical das grandes cidades brasileiras. O somatório de investimentos coordenados e coerentes de várias naturezas pode mobilizar centenas de bilhões de reais, empregar milhões de pessoas e, mais importante do que tudo, melhorar a qualidade de vida de dezenas de milhões de brasileiros.  

É o único programa capaz de gerar aliança política ampla de muitos atores. Cidades para cidadãos. Cidades boas para todos. Eixo de desenvolvimento interno com fortalecimento da cidadania ampla. Fora disso, onde encontrar ocupação digna para tanta gente? Haja manicure, motorista e motoqueiro de aplicativo… É o que queremos para o Brasil?

Temos que construir um sonho inclusivo e generoso e as cidades são o lugar por excelência para isso. Seus habitantes devem ser os protagonistas e a qualidade de vida deve ser o objetivo último de todas as políticas públicas urbanas. Dar a todos a opção de viver bem é a aposta mais inteligente para ampliar a cidadania e o crescimento, em um círculo virtuoso e redutor das desigualdades.

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