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FIRE, por Paulo Moreira Franco

“É ferida que dói e não se sente
É um contentamento descontente”
(Manfredini)

De Santo Antônio de Pádua, Texas, uma querida amiga me escreve:

O Pilkington não só falou do problema da falta de energia barata, ele também esculhambou com o relatório do Draghi.

Ele disse que o relatório é uma palhaçada que só quem não entende de economia acha que existe algo útil ali. Eu não vi o relatório, btw, e também não entendo de economia, mas a situação na Alemanha não tá bonita não, e sem energia, vai ficar pior ainda.”

GAP, querida, também tenho minha esculhambação para fazer. Na verdade, que já fiz em parte em conversas com dois amigos: um, Jorginho Carvoeiro, grande economista; o outro… bem, digamos que ele é um very Smart S.o.B. e isso é o bastante. E são dois pontos, não tão longos assim. Um deles até vai caber neste artigo (rsrsrs).

FIRE

O problema central que nem o relatório do Draghi, nem Wolf, nem Tooze, nem Piketty, nem nenhum economista com o qual você irá cruzar em algum evento, programa de TV, página de opinião de jornal etc. e tal é a centralidade de FIRE na economia europeia. Melhor dizendo: na economia ocidental.

FIRE: Finance, Insurance and Real Estate. Traduzindo para o português: Seguros, Imóveis. Finanças… bem, o mnemônico da sigla até é mais sugestivo…

Como opera essa centralidade?

Dos oitenta para cá, a medida de sucesso das empresas passou a ser a valorização das ações. Lembra que no episódio anterior eu falei de Capitalização de Mercado? Qualquer inciativa que provoque a valorização de uma ação passou a ser celebrada. Cortar custos, por exemplo. Custos envolvem coisas como a mão de obra mais qualificada, os bens de capital. Cortar os gastos com esse tipo de coisa aumenta uma série de indicadores que se usa para acompanhar o desempenho financeiro de uma empresa. Se isso faz com que os aviões passem a ter uns probleminhas, o foguete que vai trazer o pessoal para a terra tem um pequeno vazamento… bem, isso não é captado por esses indicadores.

Mas o mais bacana que você pode fazer com o seu dinheiro, se você é uma empresa (empresas são gente, gente! Pessoas jurídicas, no caso, mas ainda assim, pessoas. A gente costuma esquecer isso. Bem, isso aí no lugar onde você está. Aqui nesta terra onde escrevo a lei é outra), é comprar suas próprias ações fazendo com que elas subam de preço. Bill Lazonick, um extraordinário economista que vi em eventos algumas vezes no Banco, é possivelmente o maior crítico disso. Se há algum artigo de economia clássico da década passada, certamente um deles é Profits Without Prosperity, que saiu numa HBR faz dez anos. Basicamente, Bill mostrou que as empresas estavam gastando mais de metade de seus lucros recomprando suas ações, para felicidade de seus acionistas e dos executivos das empresas, remunerados em função da valorização das ações.

Sabe o maná de dinheiro disponível a ser investido de que falou Piketty? Em parte, teoricamente, vem daí. Por que ele não é investido pelas próprias empresas? Porque faltariam incentivos, mas isso já estaria sendo resolvido por Bidenomics. Não sei se concordo, mas parte do argumento do Draghi, que não vem de agora, sobre os problemas que o Inflation Reduction Act trouxe para a competitividade dos europeus, está na crença de que esses incentivos de fato levariam a um significativo aumento dos investimentos nos EUA em detrimento da Europa.

Mas tem um segundo probleminha nessa história. Tem a ver com o Mercado, com como essa egrégora funciona hoje.

GAP, querida, alguém já conectou o mundo woke a passive investing? Essa é uma boa pergunta de se fazer e certamente as coisas dessa fase terminal da ordem neoliberal estão conjugadas.

Uma coisa que pretendo explorar na discussão futura do Varoufakis é como ele não enxerga que o papel das Big Three – BlackRock, Vanguard e State Street – vai muito além do que aplicar dinheiro dos ultrarricos. O capitalismo de hoje é controlado pelas gigantes do investimento passivo. Elas estão para o Ocidente como a SASAC está para a China. Elas não só são donas, como controlam o Commons que são hoje as grandes empresas do Ocidente. Os ultrarricos, salvo algumas cada vez mais raras e excêntricas exceções, largaram o dia a dia de serem burgueses, gestores de um capital dos quais são donos, capital que gera rendimentos, e passaram a ter um patrimônio cujo principal ganho está na valorização do patrimônio em si. Neste sentido, o termo rentista (rentier) para essas pessoas é mal aplicado: elas não vivem de juros de títulos (ou dividendos regulares de empresas) como os aristocratas ingleses para quem se inventou a palavra. Elas têm um patrimônio que pulsa conforme o Mercado. Gente como Laurene Powell Jobs, herdeira da fortuna do Steve, amiga de Kamala, grande padroeira de causas progressistas.

O que são fundos passivos? São fundos que replicam algum índice de mercado. Por exemplo, coisas como o índice Bovespa. As ações ali vão estar na mesma proporção do Bovespa.  Se entendo que o mercado é perfeito, que dificilmente alguém baterá a média do mercado, replicar o mercado é mais simples e mais barato do que tentar ser mais esperto que o mercado. Portanto, fundos dessa natureza são mais rentáveis que a maioria dos fundos administrados e mais baratos. Aplicar em fundos desse tipo passa a ser algo que desde ultrarricos até o proverbial dentista do Taleb, passando por nossos fundos de aposentadoria, se faz conforme os recursos que se possa colocar no bolo de propriedade desse Commons que são as empresas listadas em bolsas pelo mundo afora.

Só que essas empresas não são tão passivas assim. Elas impõem agendas, isso não há dúvida. Elas coordenam preços? Há controvérsias. Mas essa é uma discussão continuada, sem uma conclusão definitiva até porque em movimento.

Mas o lance é que esse tipo de (não mais) capitalismo no Ocidente tem como meta atender à valorização de um patrimônio amorfo, sem função social a ser maximizada outra que não seu valor em si. Ao contrário da SASACe da institucionalidade chinesa – onde o Estado está preocupado com crescimento, qualidade de vida, progresso, coisas que sinalizam que o Mandato dos Céus segue firme e forte.

E isso, essa cilada ideológica do Ocidente, como boa cilada ideológica, é invisível à discussão. O máximo que o relatório Draghi se permite é entender que há um sistema financeiro à parte nos EUAo sistema de Venture Capital – que difere de como os investimentos operam no restante do Mundo. Dá para ser reproduzido? Não, e não é meramente uma questão de regulação. É um tecido social que levou décadas sendo construído. Aqui vez por outra se cai nessa ilusão. Sorry, não há tempo para se reproduzir gradualmente isso. O caminho, tanto na Europa, como no Brasil, tem que ser outro do que achar que vai conseguir reproduzir essas práticas tão americanas.

Semana que vem falo do outro ponto, do mito do keynesianismo militar. Até lá mais material terá sido fornecido pelo conflito que escala no sudoeste da Ásia, pelo conflito na fronteira da Europa.

Até, espero.

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