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Hipocrisia sem Vitória, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

You know, when I was a young man, hypocrisy was deemed the worst of vices, Finkle-McGraw said. It was all because of moral relativism. You see, in that sort of a climate, you are not allowed to criticize others—after all, if there is no absolute right and wrong, then what grounds is there for criticism?
(The Diamond Age – Neal Stephenson)

VÍNCULO 1569 – Uns dias depois do ataque do Hamas, evento que potencialmente sinaliza a abertura do segundo front ativo de uma guerra mundial tendo a OTAN ao centro, cruzo na rua com um conhecido, pelo menos uma década mais jovem do que eu. Judeu sério e praticante, se alguma vez ele colocou um camarão na boca lá se vão muitos e muitos anos. De direita de fato: bolsonarista daqueles que acham que o Estado é algo essencialmente corrupto; que falta violência por parte da polícia; totalmente contra coisas como PT, MST; totalmente a favor de se colocar os palestinos para fora de Israel à base de tiro, porrada e bomba. Conversamos um pouco sobre o ataque. Ele me conta que se ofereceu para ir lá lutar, mas recusaram (acho que a idade e o IMC dele não indicam colocá-lo carregando o peso do equipamento que um jovem infante contemporâneo carrega). Faço o ponto de que ou Netanyahu ou as Forças de Defesa de Israel fizeram uma grande bobagem. Comento que o tipo de ação impulsiva que estava sendo feita poderia comprometer a imagem de Israel, o que não seria bom. E que também não seria bom o tipo de desgaste que uma guerra urbana em Gaza traria para as forças e Israel, que julgo ter ameaças militares muito mais sérias. Falo mal da cambada de vagabundos sustentados pelo estado israelense, os hassidim que nem trabalham nem servem no exército. Ele discorda quanto ao ponto de imagem, que isso não importa, que o que tem que fazer é passar fogo e acabar com o Hamas de vez. E civilizadamente nos despedimos.

Respeito bastante esse cara. Bom profissional, bom filho, bom pai de família. Não há muito em que concordemos, mas ele é coerente em suas ideias, em suas propostas de ação. Não perco tempo tentando persuadi-lo de que ele está errado: sei que isto é inútil. Admitindo isso, o que posso fazer é discutir um ou outro problema dentro do paradigma dele. Explorar alguns problemas e contradições, algumas fragilidades que por vezes aparecem mais nas concessões do que no radicalismo.

Você, leitor, irá dizer que estou sendo hipócrita. Afinal, não “tratei de esconder os sentimentos mais sinceros”? Eu diria que não: esse conhecido sabe que sou um petista inveterado. Afirmar essa identidade naquela conversa, no entanto, nada acrescentaria. Como nos cantou o sublime Hendrix, se “I’m gonna wave my freak flag high” é porque “I got my own world to live through and I ain’t gonna copy you”. Já eu, o contrário… eu vivo num mundo cheio de outras pessoas, imperfeitas como os espelhos.

Tendo entrado na faculdade em 80, lido bastante Foucault por conta própria entre 81 e 83, vivido a crise daquela época, acabei me tornando um sujeito razoavelmente cínico. De acordo com uma pérola da instrução reformadora de Olavo de Carvalho, astrólogo: “Se a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude, o cinismo é a afirmação ostensiva do vício como virtude.” De fato, nós, os cínicos nascidos nos 60, temos um problema com a Virtude. Somos de um mundo em que ela foi desconstruída, mundo do pós-modernismo, Nietzche ressuscitado não mais como potência, mas enquanto água sanitária a descolorir o preto e branco, os vermelhos e os azuis.

Desse mundo dos sessenta, por exemplo, é o Glenn Greenwald. Se você o acompanhar no Twitter ou no Rumble, você verá que basicamente ele está ali a desmascarar a grande hipocrisia que os grupos que estão no poder praticam. Em especial, a hipocrisia que acontece no campo progressista no qual ele se insere. Lembre-se, ele vem de uma cultura jurídica americana que se esmerou mais em incriminar o perjúrio do que o ato em si, vide Clinton e um certo vestido azul.

Continuando o diálogo em The Diamond Age:

“Now, this led to a good deal of general frustration, for people are naturally censorious and love nothing better than to criticize others’ shortcomings. And so it was that they seized on hypocrisy and elevated it from a ubiquitous peccadillo into the monarch of all vices. For, you see, even if there is no right and wrong, you can find grounds to criticize another person by contrasting what he has espoused with what he has actually done. In this case, you are not making any judgment whatsoever as to the correctness of his views or the morality of his behavior—you are merely pointing out that he has said one thing and done another.”

Se se construiu uma ordem liberal onde tudo é permitido, onde havia mobilizações para permitir legalmente quase todo o tipo de comportamento (e lembrem-se de quem Glenn é viúvo), o que resta para denunciar? A crueldade, como falei semana passada, certamente. E neste sentido é em torno das questões relacionadas à invasão americana ao Iraque que começa a carreira de Glenn na imprensa.

Desmascarar a hipocrisia, no entanto, é muito inconveniente ao “Poder”. Discricionariedades e excessos estão na natureza deste, mesmo quando se comporta “dentro da lei”. E a carreira de Glenn teve seus grandes momentos (até o momento, pois possivelmente mais virão) em dois episódios de desmascaramento do “Poder”: o caso Snowden e a Vaza Jato. Mas na patológica construção de moralidades que se constituiu nos EUA após a rebelião populista que elegeu Trump, a quantidade de hipocrisias se agigantou. Uma nova moralidade “progressista” foi criada, toda uma radicalização de pautas para se mobilizar a massa jovem urbana com tempo disponível (aquela que não recebe por hora trabalhada). Isso foi muito útil para o mundo corporativo americano derrubar Trump.

Só que não dá para desligar a perspectiva anticolonial que se incentivou durante quase uma década, perspectiva muito útil para impedir que o populismo de direita de política externa não intervencionista viesse a se tornar a maior pluralidade do sistema político americano. Especialmente quando isso é cobrado num apoio incondicional a Israel em plena execução dos crimes que são a marca de Netanyahu.

E aí essas pessoas são interpretadas (ou seria interpretáveis?) numa outra leitura da hipocrisia. A leitura, que, na falta de uma melhor metáfora, eu chamaria de Flordelis: os que são literalmente o contrário do que pregam. Voltando ao The Diamond Age:

“We take a somewhat different view of hypocrisy,” Finkle-McGraw continued. “In the late-twentieth-century Weltanschauung, a hypocrite was someone who espoused high moral views as part of a planned campaign of deception—he never held these beliefs sincerely and routinely violated them in privacy. Of course, most hypocrites are not like that. Most of the time it’s a spirit-is-willing, flesh-is-weak sort of thing.”

E é neste formato de hipocrisia, da extrema falsidade, que muito do eleitorado comum americano começa a enxergar esse suporte automático das elites a uma guerra que é distante, que está sendo praticada com uma violência além do necessário, que movimenta bilhões num momento em que as pessoas sentem sua qualidade de vida caindo. A visão de que o certo é um cessar fogo cresce. E isso torna a eleição ano que vem mais complicada ainda, com uma série de fragmentações e coalizões de ocasião das quais não ainda fazemos ideia.

Em paralelo se aproxima a ruína da Ucrânia. O cobertor curto dos EUA, onde o aparato produtivo não consegue dar conta de uma guerra convencional continuada, faz com que a escolha de curto prazo entre Israel e Ucrânia seja uma escolha trágica de alocação de recursos escassos. A Ucrânia vai ficar na maca, esperando o respirador vagar. Junto com os crimes de guerra de Israel, os crimes de guerra ucranianos são outra coisa a se tornar pública ao longo de 24 e 25, após a derrota/rendição dessa ficção criada pelas duas guerras mundiais, que é essa outrora república socialista soviética. Tudo isso vai ter um impacto profundo na política europeia nas eleições que há pela frente. Mas antes disso há o problema de o que fazer com Netanyahu, um personagem em que ninguém confia, um personagem que sabe que sua carreira acaba assim que a guerra acabar.

O dano reputacional que foi causado aos EUA é imenso, e não há recuperação para ele. Esse processo deve acelerar o desmonte da reciclagem de excedentes financeiros dos países por Wall Street, o que concretamente quer dizer o fim do dólar como a moeda unipolar. A conversa na quarta-feira entre Xi e Biden, que cada vez mais parece o Barbosa do TV Pirata em suas aparições, terminou com uma extemporânea declaração de Biden, após o encontro, de que Xi era um ditador. Um bom resumo dessa discussão está neste post do Arnaud Bertrand no X.

Como cantou a sambista, “hipocrisia é a arma dessa gente, que na presença sorri, e na ausência, fere o inocente”.

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