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Imagine!

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

“What’s the worst that I can say?
Things are better if I stay
So long and goodnight”
(My Chemical Romance)

Vínculo 1544 – Três décadas atrás. Eu tinha poucos meses no Banco e aparece uma inteligente e magra estagiária tostada pelo verão na Região dos Lagos. Hoje celebra meio século, mais do que nunca mil navios. “Tempo tempo tempo tempo”. Acho que na época do governo golpista, converso, em frente ao elevador privativo e ao café, com a Chefe de Departamento. E explico a razão pela qual defendia a proposta radical de que se deveria estatizar o setor elétrico. Ela achou o argumento persuasivo, diferente do usual. E é esse argumento que trago aqui para começar a conversa.

Vamos supor que eu tenha uma placa solar que custou 100 e que me produz 100 de energia. Ela é um ativo no meu balanço que vai durar umas duas décadas, produzindo 100 constantemente. Vem uma mudança tecnológica dois anos depois e surge uma placa que custa 70 que produz os mesmos 100 de energia. Esquecendo depreciação etc., quanto vale a minha placa? 70, óbvio. Afinal, posso comprar uma placa que faz a mesma coisa que ela por 70. No meu balanço eu deveria marcar minha placa a mercado, abater 30 do meu ativo e, como contrapartida, 30 do meu patrimônio líquido. Mas e se eu não comprar a placa nova? Bem, qualquer ator que olhar o seu balanço, seja para comprar sua ação, seja pra usar de seus ativos como garantia bancária, vai avaliar que o que você tem não é 100, mas 70.

O argumento então: uma mudança tecnológica em ritmo acelerado – como a que é necessária para se enfrentar a questão de mudança climática e transição de combustíveis fósseis – vai levar a um impairment contínuo dos ativos das empresas energéticas. Seja porque novas tecnologias vão baratear os custos de produção, seja porque investimentos deverão ser feitos em tecnologias de transição, em equipamentos que serão abandonados em meio a sua projetada vida útil.

A solução neoindustrial… [perdão]… neoliberal para este problema é o estado bancar uma garantia de preço, uma simulação de mercado, algum trocado que dê garantia para que a empresa detentora de uma concessão não venha a ter prejuízo com essa capitania hereditária. (Sim, faço uma ironia. E não é uma observação a respeito da discussão de que o que temos hoje não é mais capitalismo, mas um tecnofeudalismo (como, por exemplo, diz o Varoufakis). Tem muito mais aderência do que se imagina. Isso levou recentemente a uma catástrofe nos preços de energia europeus, construídos a partir de uma simulação relativa ao mercado de gás em Roterdam.

Se é o Estado bancando o lucro, fazendo um subsídio cruzado, seja lá o que for, qual a razão mesmo de se fazer pela via privada? Ah, sim, o setor privado é mais eficiente. Sim, se você chama de setor privado empresas estatais da China comunista, como nas privatizações de energia em Portugal e no Brasil, o setor privado é muito eficiente. Tanto que este “setor privado” de empresas estatais chinesas, se tomarmos o Forbes 500 como medida, corresponde a 71% das 136 empresas chinesas na lista. Curiosamente, elas são pouco lucrativas, é bem verdade. Talvez porque “valor para o acionista” não seja propriamente o critério com que elas operam. Talvez porque a China tenha feito medidas de covid zero muito mais significativas que qualquer outro país. Talvez porque na arte de fazer um balanço, a interpretação delas de como o futuro e as obrigações impactam o patrimônio líquido da instituição seja mais parecida com o Banco quando entrei, onde exibir lucro era anátema para a Área Financeira (afinal, mais lucro, mais imposto a ser pago), do que para o Banco de hoje, gerador de caixa na ficção que são as necessidades fiscais da União.

A discussão sobre retomada do investimento sob controle/propriedade estatal inexiste. Na neoindustrialização, o Estado vai puxar uma discussão entre os atores para que se possa resolver uma série de entraves, e que o fluxo do desenvolvimento possa correr de novo. Entraves tributários, juros, obrigações legais: as reclamações de sempre que explicam porque a indústria brasileira não decola, retoma etc. A discussão passa pela necessidade de se dar subsídios, como os que o agro tem, permitindo à indústria decolar da mesma forma.

Pergunta: isso já não foi tentado? No mais recente Missão Desenvolvimento, há uma muito boa observação do André Nassif de que, de fato, as diferentes políticas industriais construídas nos 13 anos não produziram resultados significativos. Como poderá ser diferente agora? O que escapa?

Vou pegar um exemplo de uma empresa cujo nome em menos de uma década virou sinônimo de seu produto e ícone das relações de trabalho-capital modernas: Uber. O Uber é uma empresa que não conhece tal coisa chamada lucro. Há uma valorização da empresa em função do seu alcance, de suas expectativas de dominação, de algum devir sabe-se-lá-o-quê, mas lucro que é bom… necas! Dá para fazer uma empresa assim no Brasil? Dá para o BNDES apoiar uma empresa assim, que passará no vermelho mais de uma década, queimando capital (qual seja, consumindo patrimônio líquido, com injeções crescentes de capital que a mantenham líquida e operacional)? Qual seja: dá para se constituir uma nova EMBRAER nos termos em que operamos hoje?

De alguma forma as instituições do capitalismo contemporâneo permitem isso. Por outro lado, elas exigem que as empresas abertas centrem sua atuação na produção de valor para o acionista – e não para o cliente. Esse é dos pontos sobre a discussão de “correr risco”, a inocência com que se discute o investimento capitalista como se este fosse construído por empresários autocratas municiados por algumas contas incertas e instintos. Empresas grandes atuam sob obrigações para quem tem suas ações no portfólio e quem tem seus papéis de dívida. Elas não podem correr risco, elas devem imobilizar capital com a maior parcimônia e certeza que se possa pensar. Mesmo o pagamento de seus executivos depende disso na ordem neoliberal.

Há uma falta de imaginação na discussão de política econômica acontecendo hoje. Discutimos juros e tributos, discutimos se deve haver subsídios em taxas ou diretamente. Mas a ideia de um Estado empreendedor que vá além de incentivos, direcionamento e aquisição de serviços, um Estado como o que produziu nossas taxas de crescimento até os oitenta, esta é tabu. Como é tabu a discussão de que o Estado atue para produzir escala, campeões que permitam à economia brasileira ter empresas de dimensão mundial. Nisso o Banco covardemente se esquivou de defender uma das grandes realizações da gestão Coutinho: empresas capazes de se erguer além do domínio nacional. Como é tabu entender que uma política industrial bem-sucedida – assim como a modernização do campo – não vai levar à criação significativa de empregos. À melhoria deles, possivelmente. A uma melhor qualidade de oferta de bens e serviços? Sem dúvida. Mas uma política industrial não vai ser a panaceia contra o desemprego ou a uberização.

Em suma: precisamos retomar a capacidade de pensar além do que está dado. Antes do diálogo, precisamos retomar a imaginação. Talvez uma nova visita de Mazzucato, ela também geminiana, para nos relembrar o quanto o estado perdeu de sua capacidade de pensar e criar sob a influência das empresas de consultoria. Sei lá!

Associação dos
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