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Esquerdas Vão Vir, por Paulo Moreira Franco

Paulo Moreira Franco – Economista aposentado do BNDES

“E de volta de ir habitar seu tempo:
ele corre vazio, o tal tempo ao vivo;
e como além de vazio, transparente,
o instante a habitar passa invisível.”

(João Cabral de Melo Neto)

VÍNCULO 1585 – Numa pequena troca de mensagens com o Elias, quando construía o argumento do texto da semana passada, ele mandou um artigo de resposta ao Safatle que também saiu na Folha: “Esquerda: em crise, mas viva”. Há um ponto desse artigo, que, a meu ver, abre um imenso espaço para reflexão.

“Diante desse quadro, a questão na ordem do dia é a da alternativa ao estado atual de coisas. Essa questão se desdobra em duas: o objetivo estratégico e o caminho tático.

Na primeira chave, Safatle esboça um programa que inclui a questão democrática (“soberania popular”, “autogestão”) e a questão social (“igualdade radical”, “preservação ambiental”). Um terceiro ponto parece ausente: a questão nacional.”

A questão nacional! Não tome por varguismo da minha parte, mas essa é uma questão chave no entendimento do que é esquerda. E, por esquerda, eu tomo uma definição bem lá atrás, Marx sequer era vivo: aquele grupo de pessoas sentado num canto no que viria a se tornar o processo fundador do mundo político em que vivemos: a revolução francesa.

A revolução francesa! Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Karatani, de quem já falei algumas vezes em meus artigos, observa essas coisas como uma estrutura inseparável: um nó borromeano (é um arranjo de três círculos entrelaçados no qual a remoção de qualquer um deles faz com que os outros dois fiquem soltos). Karatani vê a sociedade burguesa/capitalista construída nesses três espaços necessários: a Liberdade para o Mercado, a Igualdade para o Estado, e a Fraternidade para a Nação. Sem um deles os outros não se sustentam.

É nesse espaço político do Estado-nação que a esquerda acontece, mesmo uma esquerda internacionalista. Por quê? Pense no mundo europeu anterior. Peguemos um interessante exemplo: o que dá a cor laranja à camisa da seleção holandesa? Uma casa real cujo nome vem de um condado na França e a origem de um lugarejo no Palatinado, centro-oeste da Alemanha. As elites do mundo medieval não necessariamente eram “nacionais”. Você se subordinava dentro de obrigações de vassalagem. Uma obrigação maior que qualquer identidade nacional – a fé – se sobrepunha. O século XIX, como aprendemos nas aulas de história, é aquele momento em que as identidades nacionais vão se formando Estados, como Alemanha e Itália surgem. Neles, igualdade perante a lei, fraternidade de uma língua/cultura em comum, e uma sociedade não mais aristocrática, mas burguesa. Uma sociedade onde a Lei e a Pátria estão antes das devoções. Numa sociedade democrática isso se traduz no mundo liberal. Num regime autoritário, em coisas como o fascismo.

Mas nem tudo se estruturou dentro desse paradigma, e nesse sentido, aqui faço uma observação algo subversiva: o neoliberalismo não é uma oposição à esquerda em si, à social-democracia, como estas eram oposições (melhor dizendo, gradações) ao liberalismo. O neoliberalismo também é uma oposição ao liberalismo. Tanto liberalismo quanto social-democracia (quanto fascismo) acontecem nas esferas do político do espaço nacional, na negociação dos pesos de cada anel, dos espaços onde cada anel irá reinar. O dinheiro, lembremos, existe dentro dessa esfera.

O neoliberalismo traz outra regulação, uma regulação de fora. Riqueza e propriedade se autonomizam em relação ao espaço nacional, ganham uma escala superior. O capital (aquilo que pode servir de garantia na criação de moeda) ganha definitivamente um espaço próprio crescentemente imune à esfera do nacional. As identidades do Nacional se fragmentam em individuações próprias, as leis vão perdendo sua universalidade.

Na raiz do neoliberalismo há suíços, há gente oriunda do Império Austro-húngaro (o que é muito bem explicado pelo Slobodjan em Globalistas). Isso é algo interessante: são pessoas com uma construção de mundo para antes e para além do nó do capitalismo. A Grande Guerra forçou a fissão do Império Austro-húngaro em nações fragmentárias sujeitas a conflitos e aptas a receber o fascismo. Forçou sob umas ficções que vieram a se fragmentar mais ainda após o fim da Guerra Fria, uma explosão de um nacional anacrônico dentro de uma Europa em vias de federalização. Essa fissão de espaços políticos em busca dessa estabilidade do “nacional”, concomitante a uma rendição crescente da esfera do econômico (e do Estado em menor escala, se considerarmos o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, por exemplo), é um poço de contradições antidemocráticas e, por tabela, antiliberais, já que o ato de legislar sobre o que importa foi transferido a esferas burocráticas, a colegiados não (diretamente) eleitos.

“Os economistas têm apenas mudado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é interpretá-lo”, como disse Bruno Latour. Duas décadas atrás fiquei fascinado com Império, de Hardt/Negri. Tinha só um problema: não havia uma proposta de luta ali. Sem Logo, de Naomi Klein, trazia uns elementos mais palpáveis, e uma práxis política embutida. Mais do que do prosseguimento de Hardt/Negri nos subsequentes Multidão e Bem-Estar Comum, foi o misto de situacionismo e ação direta anarquista que marcou as ações antiglobalização da virada do milênio até o momento dos Occupy. Só que ali o mundo já havia mudado. Como observa Varoufakis, após 2008 o mundo é outro, não estamos mais numa dominância do capitalismo, mas de outra coisa, uma coisa que ainda não tem nome.

Quem são as estruturas territoriais que têm se mostrado funcionais neste momento de crise? Sintomaticamente, três estruturas bem distintas, mas com algumas coisas em comum se prestarmos atenção. China, Índia e Rússia são Estados com uma diversidade de nações dentro do seu espaço político, com uma perspectiva civilizacional para antes do capitalismo, com diferentes arranjos internos entre si e dentro de si. China, Índia e Rússia, com suas “genéticas” das centenas de anos de identidades imperiais, não são “otimizadas” para esse arranjo estrito do estado-nação (que não funciona mais), e não estão sujeitas às contradições e às lutas intestinas que o Ocidente atravessa. Por mais que eu mesmo tenha ilusões românticas, a la Fox Mulder – fight the future, quanto aos bonés vermelhos, seja na Europa, seja nos EUA, revertendo ou contendo a globalização, derrotando os deep states, eu sei que isso é uma carga de cavalaria.

O que coloca o seguinte problema para a esquerda brasileira: que caminho seguir, quem imitar (pois imitação foi o que fizemos na maioria das vezes)? Será que o Brasil, com seu nacional incompleto de grande colônia, onde há uma elite extrativa, entreguista, que sonha com o momento em que vai morar em Miami ou Lisboa (e mesmo para pessoas da professional managerial class, como nós, isso se aplica), pode dar um passo para além desse nó em direção a um outro arranjo de sociedade? Isso se faria no mesmo salto do último homem no abismo, do Ocidente e seu capitalismo, com os mecanismos de culpa e de fragmentação da pólis? Ou seria uma solução peculiar, através, por exemplo, do resgate da ambiguidade do mundo de JK, letra de Tropicália, aposta que na releitura do canibalismo pelos anos sessenta, entre a bossa nova dos 50 e o pós-milagre dos 70, acharíamos parte do Projeto?

Esse é o dilema. Pessoalmente, sei que não dá para copiar as instituições chinesas (assim como a ditadura fracassou ao tentar copiar instituições americanas). Há um caminho civilizacional próprio a inventarmos (que certamente não passa por Dugin). Se percebermos quanto certas soluções nossas, como o II PND e Porto Alegre, por exemplo, foram inspiração, referência, para ações da esquerda mundo afora (ou políticas de desenvolvimento chinesas), talvez a gente possa fazer algo realmente transformador. O que era o espírito daquele pequeno grupo sentado do lado esquerdo, que acabava conduzindo a Planície, o Pântano. Ou o Centrão, se você preferir.

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